Bucolismo (em lá menor)
Fazendo e ganhando a vida da escrita, nem sempre as coisas correm com a fluidez necessária. Mas disso qualquer leitor se pode queixar. Não que esteja a sugerir que os meus estimados leitores façam ou ganhem a vida da escrita, nada disso, mas puxando-os para o meu lado ao tornar implícito que há muitas formas de «escrita»: requerimentos, documentos administrativos, composições diversas, cartas aos entes queridos, divagações, receitas, inventários, listas, etc., mais ou menos apuradas ou inspiradas.
Esta reflexão ocorreu-me enquanto fumava «um pensativo cigarro» (parece-me que isto foi dito por alguém mas não me lembro por quem e, como não quero incorrer em problemas de cópia, é melhor meter a expressão entre aspas, para me precaver, e fazendo desde já um alerta para que quem lê não venha a ser apanhado também) e me preparava para entrevistar uma personagem singular, pastor, compositor de assobio, criador do manual sobre o lançamento seguro de pedradas, e poeta no intervalo das ordenhas ou das prenhezes, homem de montes e vales, mas também do mundo, a quem ocultaremos o nome a pedido do próprio e da família, que graciosamente nos facultou o azimute para o encontrarmos.
_ Comecemos pelo princípio: porquê, a pastorícia?
(A questão pareceu surpreendê-lo, mas rapidamente se recompôs).
_ Ora, porquê?!... Desígnio, propósito, motivação, intenção, vontade, projecto, epifania, lua, acaso... quem sabe?...
(Desta vez, a profusão e a cadência de motivos surpreendera-me a mim... Teria que estar preparado e ver até onde isto nos levaria. Iria ver).
_ Podemos supor, então, que esta actividade lhe moldou a sensibilidade, o espírito e a mente, colocando-o numa posição privilegiada para discernir sobre as coisas da vida e do mundo, certo?
_ Errado!
_ Como assim?
_ O meu negócio são as ovelhas, como anteriormente foram as cabras. O que me interessa é se comem e como, se parem bem e se os cães fazem o seu trabalho. Depois, havendo tempo e disposição, fazemos as outras coisas.
_ As coisas da vida e do mundo, suponho...?
_ Não.
_ Não...?!
_ Sim, não. Percebeu tudo mal.
_ Se calhar... Não quer explicar-nos, a mim e aos leitores?
_ As outras coisas são as composições para assobio, com orquestra e à capela, e o manual da pedrada, já na quarta edição.
_ Sem esquecer as composições em verso, também. Não nos quer falar delas?
_ Hoje não.
_ E sobre as músicas e o livro, não quer acrescentar nada...?
_ Não sei se está preparado...
_ Diga, diga, não se envergonhe!
_ Foram-me ditados...
_ Ditados?!... E por quem, por quem?!...
_ Pelo espírito santo... de orelha.
A paisagem que me rodeia é deslumbrante. De tirar o fôlego. Talvez da altitude... Nos vales, com o rio a serpentear, escutam-se os rumores da natureza. Junto de mim, o rebanho mantém-se aquietado e tranquilo. Ouve-se um silvo de pedra, lançado por mão experimentada. O estrondo de vidro a quebrar-se ecoa pelos montes e vales...
(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.38)
Esta reflexão ocorreu-me enquanto fumava «um pensativo cigarro» (parece-me que isto foi dito por alguém mas não me lembro por quem e, como não quero incorrer em problemas de cópia, é melhor meter a expressão entre aspas, para me precaver, e fazendo desde já um alerta para que quem lê não venha a ser apanhado também) e me preparava para entrevistar uma personagem singular, pastor, compositor de assobio, criador do manual sobre o lançamento seguro de pedradas, e poeta no intervalo das ordenhas ou das prenhezes, homem de montes e vales, mas também do mundo, a quem ocultaremos o nome a pedido do próprio e da família, que graciosamente nos facultou o azimute para o encontrarmos.
_ Comecemos pelo princípio: porquê, a pastorícia?
(A questão pareceu surpreendê-lo, mas rapidamente se recompôs).
_ Ora, porquê?!... Desígnio, propósito, motivação, intenção, vontade, projecto, epifania, lua, acaso... quem sabe?...
(Desta vez, a profusão e a cadência de motivos surpreendera-me a mim... Teria que estar preparado e ver até onde isto nos levaria. Iria ver).
_ Podemos supor, então, que esta actividade lhe moldou a sensibilidade, o espírito e a mente, colocando-o numa posição privilegiada para discernir sobre as coisas da vida e do mundo, certo?
_ Errado!
_ Como assim?
_ O meu negócio são as ovelhas, como anteriormente foram as cabras. O que me interessa é se comem e como, se parem bem e se os cães fazem o seu trabalho. Depois, havendo tempo e disposição, fazemos as outras coisas.
_ As coisas da vida e do mundo, suponho...?
_ Não.
_ Não...?!
_ Sim, não. Percebeu tudo mal.
_ Se calhar... Não quer explicar-nos, a mim e aos leitores?
_ As outras coisas são as composições para assobio, com orquestra e à capela, e o manual da pedrada, já na quarta edição.
_ Sem esquecer as composições em verso, também. Não nos quer falar delas?
_ Hoje não.
_ E sobre as músicas e o livro, não quer acrescentar nada...?
_ Não sei se está preparado...
_ Diga, diga, não se envergonhe!
_ Foram-me ditados...
_ Ditados?!... E por quem, por quem?!...
_ Pelo espírito santo... de orelha.
A paisagem que me rodeia é deslumbrante. De tirar o fôlego. Talvez da altitude... Nos vales, com o rio a serpentear, escutam-se os rumores da natureza. Junto de mim, o rebanho mantém-se aquietado e tranquilo. Ouve-se um silvo de pedra, lançado por mão experimentada. O estrondo de vidro a quebrar-se ecoa pelos montes e vales...
(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.38)
Etiquetas: Manuscrito
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