Sobre o respeitável aconchego de uma lona ou de uma manta...
Depois de muito pensar e meditar, hoje resolvi ser bombástico. E isto porquê? Por causa dos títulos. É uma palavra matreira esta, «títulos», suficientemente semântica para enganar os simples ou os incautos. Mas também os complexos ou os experientes. Sei do que falo, pois a minha carreira literária e profissional tem vivido, quase que exclusivamente de títulos. Mesmo assim, desconheço quantos títulos arranjei, publicitei ou acumulei, como constatei ao abrir um baú, daqueles do tempo dos afonsinos, com chave e pano de renda em cima, talvez resquícios de um enxoval ou de alguma partilha de heranças. A conclusão era óbvia: mais do que o conteúdo, o que motiva a maior parte das pessoas são os títulos. Aliás, fazendo uma sumaríssima sondagem pelos próximos ou menos próximos facilmente se concluirá que os títulos ocupam uma substancial parcela daquilo que é valorizado, contabilizando também aqui uma parte, não menos substancial, de encadernação e acabamento. Mas não se iludam os que pensam que este intróito corre o risco de ir para um caminho que não nos é familiar, como é o cultural, o intelectual e o vivencial, universo de referência para os leitores das minhas crónicas e ou reportagens, sem contar com os livros publicados, actuais ou futuros, que escreverei logo que tiver tempo de me ocupar deles, situação que não irá ocorrer tão breve...
Mas tínhamos começado com o bombástico e, até agora, não temos feito nada mais do que dar uns estalinhos, era melhor começar a dar guita à história antes que ela nos rebente na boca. E isso, ninguém quer. Por isso, Adelante.
Como referi no parágrafo anterior, a descoberta do baú e do que ela continha motivou-me a equacionar uma pequena experiência a propósito da questão dos títulos e da minha tese a respeito deles, não se perderia nada em tentar e eventualmente ainda poderia ganhar uns trocos, sempre necessários, é certo, mas que a mim pouco me dizem, desprendido como sou... Iria ver como a experiência decorreria num ambiente propício, uma espécie de feira da ladra que decorria de quinze em quinze dias num dos bairros da terra mais dados as estas coisas do pitoresco e das trocas em regime aberto, expostas em cima de respeitáveis lonas ou mantas, o que se poderia querer mais...? (antes que me esqueça, tomar nota do título que encontrei para a reportagem/reflexão e que acabei de descobrir: «Sobre o respeitável aconchego de uma lona ou de uma manta», ainda com dúvidas se com reticências ou sem elas, depois vejo e decido).
Para garantir e testar a validade da minha tese, não iria ser muito selectivo nas escolhas. Por isso, fechei os olhos e retirei do baú uma mão cheia de títulos, mais ou menos dois quilos, e meti-os dentro da mochila. À parte, já tinha a lona e a manta, caso fosse necessário, e meti os pés ao caminho, pensando na melhor maneira de promover o artigo e de que forma. Já tinha uma ideia, não me parecia difícil. Para além do mais, convém não esquecê-lo, conhecia a mente e a alma humanas. Era só juntar as coisas...
Lá chegado, montei a tenda. Espetei o cartaz que tinha idealizado numa árvore, qual armadilha, onde se dizia: «Escolha um título sem esforço. Não custa nada, mas se puder dar um contributo...». Era suficientemente apelativo, parecia-me, e estava certo. Tinha acabado de dispor os títulos ao longo da lona e da manta (ainda bem que a trouxera), quando me apareceu uma alma meio esquadrilhada a manifestar interesse num dos títulos em exposição, aquele que titulava: «Prolegómenos eternos», e se tinha a ver com literatura erótica, dispondo-se a pagar o que fosse preciso... Aqui, tive um rebate. Sabia que era um título de iniciação à Filosofia, mas vista segundo algumas perspectivas e com o acordo do leitor poderia talvez encaixar-se no tipo de literatura que aquela alma pretendia, mas o que era justo era pagar o preço que estava marcado, não pactuava com a especulação. E lá o levou o título. E foi isto toda a santa manhã... Para a estatística e registo para a posteridade, aqui ficam alguns dos exemplos de títulos que confirmavam, à saciedade, a minha tese: «Em cima do trevo», título de poesia erótica arrematado por um entusiasta da agricultura biológica; «Máquinas absurdas», título de uma colectânea de contos, levado por estudante da área das engenharias mecânicas; «O legal guião», título de um argumento de cinema que caiu que nem ginjas no bolso de um jurista; «Despojamento, modo de usar», comprado por um gestor dos bons para ter em cima da secretária; «Com palha, mas sem corantes», título de iniciação à retórica, abarbatado por um chefe de cozinha, e muitos e muitos outros, escolham os leitores de que tratavam e quem os levou a arregalar o olho e a esfregar as mãos de contente: «Abre bem essa pétala», sob o tema da jardinagem, «Hoje, bati numa porta fechada», relacionada com o mundo fascinante dos carteiros, «Amanhã, talvez, falaremos disso», sob as mil e uma formas de catequização e conversão, «Humor para sisudos», um sempre útil e estimável título de auto-ajuda...
(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.199)
Etiquetas: Manuscrito
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