12 abril 2020

On the road, mas com a média alta

A ideia não era nova. Pensava nela frequentemente, mas outras prioridades tinham-se colocado, a maior das quais era a de sustentar uma família numerosa, espalhada pelos quatro cantos do mundo... Mas decidira que ou era agora ou nunca! As fontes tinham-me garantido que havia condições para fazer o que tinha intenções de fazer. Mais a mais, o lugar para onde teria que me deslocar até nem era longe e o tempo estava bom para fazer uma caminhada ou ir de bicicleta. Pensando bem, talvez a bicicleta fosse a melhor opção. Conseguia não um dois em um, mas um três em um: deslocar-me, fazer o que tinha a fazer e preparar-me para a subida da Torre quando fosse a altura da Volta. Nada mau e exequível! Fui buscar a bicicleta, verifiquei se a corrente tinha óleo, testei os travões e ajustei o selim. Agora, era só dar ao pedal. Estabeleci como média uns razoáveis 120 km/hora, em plano, e uns prováveis 150 nas descidas. Nas subidas, ficar-me-ia aí pelos 80, porque não queria forçar e também não tinha pressa. Lá para a hora do lanche devia chegar lá... E assim foi.
Tinham-me prevenido para a opulência da mansão, mas não acreditara até a ter visto: era mais ainda! Um requinte, um luxo, uma magnificência, um conjunto de adjectivos que só tinha visto aplicados aos palácios com que me tinha defrontado ao longo dos passeios lúdicos pelas distantes Ásia e Oriente, quando era mais novo... Só visto! Só visto, porque contado parece mentira!... Fosse eu outra pessoa, mais dada ao exagero ou à fantasia, e outro juízo se faria daquilo que vi e que estou agora a contar, revivendo a cena como nos tempos em que fui ajudante de realizador em Hollywood, algumas vezes eu próprio realizei, e que lucros deram esses filmes!... Tenho em casa a cadeira, para quem estiver a desconfiar... Só quem nunca foi ao cinema e não conhece Hollywood é que não acredita. Mas nós sabemos que há sempre pessoas mal formadas neste mundo... Isso até me faz lembrar dos tempos em que fiz uma pós-graduação em Cambridge ou Oxford, nem sei bem, pois elas foram tantas, mas numa delas foi, de certeza, isso era garantido. Era só ir a casa, ao escritório, e obter a cópia da minha comunicação, apresentada em latim (uma surpresa, para a época), e no final ovacionada, de pé, pelos 1500 participantes, corredores incluídos. Um dia, talvez, as minhas memórias irão pegar nessa e noutras matérias (o difícil vai ser escolher...) e dar à estampa um bestseller como ainda se não viu... Olá, se vai!
E as histórias continuavam, parecendo que o meu entrevistado não tinha intenções ou vontade de se calar... Mas fazia-se tarde. À despedida, deu-me um conselho: «Bebe muita água e não descures o imaginário. Quanto ao estilo, mete umas aspas nos parágrafos anteriores, para garantires que é uma transcrição do que ouviste de viva voz...» e piscou-me o olho. «Não te esqueças», acentuou, que podes sempre dizer que entrevistaste a minha pessoa, D. Aldrúbias, ilustre presidente, tesoureiro e vogal emérito da ordem dos Contadores de Histórias deste Mundo e do Outro, qualquer que ele seja. Vai em paz. Para o caminho ofereço-te este charuto, genuíno Habano, que me foi oferecido, com pompa e circunstância, pelo próprio Fidel Castro, naquela vez em que...», mas já deixara de o ouvir. Se não me pusesse a pau, ainda perdia a carreira das sete...

(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp. 69)

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