Quando conhecera o quadro negro, até estava bom tempo. Não tinha sido assim nos últimos dias, mas quando o encontrou era isso que se verificava: bom tempo. Esse facto levou-o a pensar como os preconceitos podem condicionar os juízos, umas vezes mais, outras menos, mas sempre qualquer coisinha. Como era contra os preconceitos, sobretudo pelo que eram e pelo que representavam, uma espécie de fruta não madura, como revelava o prefixo 'pré', resolvera aproximar-se do quadro negro e trocar algumas impressões sobre a sua vida, a apanha da azeitona, pois estávamos na época dela, e se acreditava na possibilidade de vida extraterrestre num T0, apenas com uma casa de banho e uma sala que servia simultaneamente de quarto e de escritório. Tinha consciência de que as perguntas eram um tudo ou nada difíceis, sobretudo a relacionada com a apanha da azeitona, pois tinha sinceras dúvidas sobre se o quadro negro seria adepto da cozinha mediterrânica, o que lhe parecia não ser o caso. Quanto às outras, estava mais confortável, embora mantivesse, por princípio, alguma réstia de cepticismo, coisa que era conveniente seguir, prenda de um Natal longínquo, perdido no tempo, em que tinha pedido ao Menino Jesus um ferrari, uma loura e uma morena, e tinha recebido um carro dos bombeiros que fazia «ti-nó-ni», com a indicação de frágil e que a pilha fosse substituída por uma alcalina...
O quadro negro recebeu-o bem, com afabilidade, e disponibilizou-se para a troca de impressões, salvaguardando que não se sentia à vontade para falar sobre a apanha da azeitona, coisa de que já suspeitava, mas que tinha todo o interesse em falar sobre a sua vida e sobre a vida extraterrestre no T0, preferindo, se não se importasse, centrar-se neste tópico, pois achava a sua vida desinteressante, banal como qualquer vida banal, mesmo que isso contribuísse, curiosamente, para a perpetuação de um outro preconceito, «o da banalidade da vida banal», coisa que não tinha fundamento nem sustentabilidade real, como todos os estudos de opinião e sondagens evidenciavam, descontando aqueles que eram feitos nos
resorts de luxo e nuns assim-assim, em que os resultados eram ou pouco discordantes com a tendência, mas que acabavam por entrar na margem de erro. Tirando isso, os dados aguentavam-se e podiam ser citados com toda a segurança, havendo já propostas no sentido de virem a ser parte integrante da Wikipédia.
Quando se despediu do quadro negro ficou com a impressão de que muito tinha ficado por dizer. Não se surpreendia, contudo, porque as conversas são como as cerejas, se bem que estivéssemos numa época em que não abundavam ou não existiam sequer. Sobre a vida extraterrestre no T0, o quadro negro deixara algumas recomendações, sobretudo em termos de decoração, e aconselhava uma pintura com cores quentes. Ele próprio iria fazer um
refresh e dar umas demãos menos sombrias. Quem sabe, ainda seria moda na Primavera.
Etiquetas: Natal