30 dezembro 2015

Um xarope para a crise

A crise de identidade apareceu numa altura em que se tornava difícil lidar com ela, pois estava tudo fechado. Não que isso fosse uma novidade, pois já sabia que as crises de identidade tinham esse condão, o de não se saber quando apareciam. Podia-se suspeitar, é certo, mas nunca se tinha a certeza. No seu caso, a crise de identidade aparecera por volta das 18h27, mais ou menos, numa altura em que se preparava para encomendar meia dúzia de filhoses de abóbora, uma dúzia de pastéis de bacalhau e um pedacinho de entrecosto na brasa. Com o aparecimento da crise de identidade, assim tão de repente, suspeitava que teria que alterar o tipo e os produtos da encomenda, pois ela começara logo a torcer o nariz aos pastéis de bacalhau e ao entrecosto, mantendo uma reserva céptica em relação às filhoses, que lhe davam conta da linha.
Bem o tinham avisado para esta eventualidade, a do aparecimento da crise de identidade, e de ter sempre à mão o xarope para a combater, coisa que ele pensava só iria usar esporadicamente (talvez nunca, com um bocadinho de sorte). E este foi o seu primeiro erro. Como devia saber, a sorte dá muito trabalho. Estando de férias, esquecera-se.
A época também se propiciava. Há épocas propícias e épocas não propícias para as crises de identidade. Como estávamos numa época propícia, este tinha sido o segundo erro.
Juntando o primeiro com o segundo erro, originara-se o problema. Que não seria fácil de resolver, mas que iria tentar. Com ajuda ou sem ajuda, logo se veria. Tentaria sem ajuda, mais a mais porque estava tudo fechado, como já se tinha dito, com a excepção do café onde fora fazer a encomenda.
Usaria o charme, pois alguém lhe dissera que não falhava. Só teria que decidir que tipo de charme usaria, se o quinze, se o vinte, tudo dependendo da temperatura ambiente e do acompanhamento, pormenor não despiciendo, como se constatara com o episódio da encomenda. Talvez o charme 17,5 fosse o aconselhável, pois representava a média e no meio é que estava a virtude, era o que sempre lhe diziam, quer as vozes avisadas, quer as não avisadas, que também deviam ser ouvidas em nome do espírito democrático.
A princípio e apesar do charme, não tinha sido fácil lidar com a crise de identidade, ela própria também a viver a sua própria crise, coisa de que se suspeitava, apesar de tudo, pois o seu aspecto desleixado e desprendido, mais do que era costume, já dava pistas nesse sentido. Havia que ter cuidado e sensibilidade, por isso. Um pouco de paciência, também, nem que fosse preciso aumentar a dose de charme para, digamos, 18,5 (pois também não queria abusar e por estar convencido de que seria suficiente), provavelmente acompanhado com umas fatiazinhas de regueifa, acompanhamento muito do agrado das crises de identidade, segundo pesquisa que tinha feito na Internet, já em casa e depois de ter acendido a lareira.
Por sorte, a regueifa funcionara e o telemóvel da crise também, ao dar-lhe notícias que lhe agradavam e que se resumiam a uma vida de folia num paquete de luxo, rio acima, rio abaixo.
Quanto a si, ficar-se-ia por casa. Compostas as coisas, ainda podia ir tratar da encomenda ao café. Faria figas para que ainda houvesse feijoada...



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