18 dezembro 2015

Nevoeiro

_ Que noite, hem?
_ Não está mal. Eu gosto deste tempo. Faz-me bem à alma.
_ A mim não. Dá-me cabo dos ossos. Estou desejoso que acabe.
_ Por mim, pode continuar. Ainda pode melhorar, tenho esperança. Quando chegar a altura, logo saberei.
_ Não estou a perceber: ainda quer o tempo com mais nevoeiro do que o dos últimos dias?!
_ Sim, é isso mesmo. Como lhe disse, gosto deste tempo e faz-me bem à alma. Tenho é que esperar pelo momento ideal.
_ Mas, o momento ideal p'ra quê?
_ Para que apareça e revele o futuro... Está para breve, só lhe digo...
_ Está a brincar comigo, certamente... Vai aparecer onde, não me diz?
_ Ainda não é hora. Se fosse, eu sabia. Terá que ter paciência.
_ Agora reparo: você não tem frio, com essa armadura e esta humidade? E as caneleiras ou lá que é isso, não lhe fazem mal à circulação?
_ O cavalheiro continua a não perceber... É pena, mas isso diz-me que ainda não é o momento certo. Vou ter que esperar mais um pouco... É pena, só lhe digo.
_ Você deve ser artista, está visto. Com a fardeta que traz e com o que diz... É do teatro, não é verdade?
_ Só o da vida e o da esperança, meu bom homem. Sou um símbolo. Não me está a conhecer, pois não?
_ Bem, p'ra falar verdade... não estou, não senhor. Não me quer dar uma pista, um nome, talvez?
_ Você conhece a história, a verdadeira?
_ Sim, pode dizer-se que mais ou menos. Sei quem foi o Afonso Henriques. Também me lembro de algumas datas, mas às vezes já me baralho... E você, conhece-a?
_ Não só a conheço, caro amigo, como participei nela e, de certo forma, ainda a condiciono...
_ Ah, então é historiador ou jornalista, não é verdade?
_ Não propriamente... Sabe, há muitos anos eu fui rei...
_ Mas olhe que já não há rei há muito tempo... Não será o amigo que, desta vez, está baralhado?
_ Não, sei o que digo. Vou dizer-lhe o nome pela qual me conhecem: Sebastião.
_ O Encoberto? Porque é que não disse logo?
_ Não sei... talvez por timidez.
_ Não tenha medo, homem! Quer um bocadinho de aguardente?
_ Um chá, talvez. Caía-me melhor. Acha que posso aparecer hoje e anunciar o futuro?
_ Se fosse a si, não aconselhava. Sabe... o nevoeiro ainda não está no ponto e daqui a nada joga a selecção. É melhor não.
_ Acha mesmo?
_ Acho.
_ E consegue prever quando é que o nevoeiro estará bom? Convinha que o aparecimento não demorasse muito, pois receio que já esteja encoberto há muito tempo. Qualquer dia, mesmo não estando nevoeiro, já não me reconhecem...
_ Pois... é um problema. Mas com isto das alterações climáticas é uma incógnita. Sabe em que mês estamos?
_ Dezembro, talvez.
_ Dezembro? Estamos em Julho! Não vê que amanhã está prevista neve!... Nevoeiro do bom, daquele que está à espera, só lá pr'a Maio. Por isso, até lá nada feito! Quer vir ver o jogo?
_ É melhor não. Marquei aqui encontro com o Camões, o do poema épico, sabe quem é?
_ Ora não! Bom trabalho me deu, o malandro, por causa das orações. Dê-lhe cumprimentos.

(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp. 37)

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