O abismo
A coisa complicou-se quando se apercebeu onde se tinha metido. Desta vez, não seria suficiente recorrer às ferramentas de que dispunha, uma corda, uma escada e um canivete, que tinham servido em situações anteriores, suspeitando que agora teria que recorrer a mais qualquer coisa, talvez do domínio do esotérico ou do sector dos efeitos especiais, se ainda estivesse de pé o contacto que estabelecera, em tempos, com uma empresa que dava os primeiros passos nesse ramo e que acabara por se especializar em fazer flores quando era preciso, com terra ou sem terra, fizesse frio ou calor, dominando a arte do abracadrabante. Não havia maneira de fugir, pois o desafio era muito grande: sondar um abismo conceptual, localizado algures. Até agora, a sua especialidade tinham sido os baixos das casas ou das águas. Neste cenário, as ferramentas acima chegavam. Para lidar com o abismo conceptual, a coisa fiava mais fino. Para começar, era mais fundo. Qualquer pessoa, mesmo não sendo do ramo, chegaria a essa conclusão. Segundo, lidava com realidades mais fluídas, como o pensamento, logo mais perigosas, porque mais instáveis. Terceiro, não dispunha de muito tempo, pois o Natal aproximava-se e ainda não tinha comprado as prendas. Iria dar uma vista de olhos, mesmo assim, pois considerava-se um profissional. Pensava que seria coisa para demorar duas horas, três no máximo. Como o triciclo estava sempre aparelhado, só tinha que preparar uma merenda e uma muda de roupa. Telefonou a perguntar aonde é que era o abismo conceptual e disseram-lhe para ir sempre em frente, coisa que fez. Quando lá chegou, tirou as ferramentas do triciclo e fez uma sondagem ao terreno. O abismo conceptual não estava à mostra, mas disso já suspeitava. Por sorte, apareceu um velhote a quem perguntou se, por acaso, teria conhecimento da existência naquele local, mais pr'a cima ou mais pr'a baixo, de um abismo conceptual mais ou menos daquele tamanho, mais metro, menos metro (com as mãos procurava exemplificar as dimensões do abismo conceptual), que lhe disseram que existia, era só para confirmar. O velhote não tinha a certeza, mas recordava-se de que, em tempos, havia para ali um poço, uma mina, talvez, que seria muito funda, mas que agora estava fechada. Que perguntasse mais à frente, no café, porque não podia ajudá-lo mais e agora tinha que ir jogar a sueca, que desculpasse. E foi à sua vida. Fez o que o velhote lhe dissera e chegou ao café, entrou, sentou-se, e pediu uma taça e uns pastelinhos de bacalhau. Quando perguntou pelo abismo conceptual, o dono do café disse-lhe que nada feito, que viesse noutro dia, pois o abismo conceptual existia, sim senhor, mas já não dava entrevistas, se não ficasse convencido que perguntasse ao próprio abismo, que estava sentado ali na mesa do fundo, a beber um fino e a comer tremoços. Mas que não estivesse com coisas, porque ele era muito susceptível! Apesar do aviso, resolveu mesmo assim abordar o abismo conceptual e confrontá-lo com a pergunta sacramental: «Você existe ou não existe?». «Tem dias - respondeu - Mas hoje não é dia».
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