16 outubro 2016

Rock(alhada)

Formara o gosto musical a ouvir e a acompanhar as grandes bandas de rock dos anos 70. Fartara-se de viajar e de vivenciar, mas agora estava calmo, numa fase zen. Mas o bichinho do rock continuava lá, sobretudo quando da meditação passava para o quotidiano corriqueiro. E aí punha-se a ouvir as bandas de então, num gira-discos que tinha herdado de uma tia. Deixara de ir aos concertos, até porque o mosteiro onde se isolara estava longe do circuito das digressões das bandas. Mas como já dominava a arte da meditação, achou que por uma vez não fazia mal dar um salto ao concerto mais próximo, que se iria realizar a cerca de 1500 km do mosteiro onde residia. Com um bocado de sorte e sem trânsito na auto-estrada da meditação, estaria de volta antes da meditação da manhã, um pouco antes do pequeno-almoço. Já não iria de blusão e de cabelos pelos ombros, como se compreende, mas estava certo de que a fruição e o gozo do concerto seriam como antigamente. Provavelmente iria sozinho mas não fazia mal, até porque as predilecções musicais não eram uniformes no mosteiro. À cautela, não fosse o diabo tecê-las (uma reminiscência do seu período bizantino), iria deixar um recado no placard do átrio, junto do gongo, a dizer que não contassem com ele para a meditação da noite, mas que não ficassem preocupados, pois ia só dar um saltinho à outra vida, pois tinha ficado com uma certa saudade desses tempos...
No dia do concerto ali estava ele, feliz e contente, disposto a viver o momento como único. Vivia intensamente cada acorde e canção, de que se recordava com precisão e nostalgia, ensaiando com os dedos o acompanhamento das mais conhecidas, que conhecia de cor e salteado. Para o que não estava preparado era para a potência das colunas, como iria verificar brevemente, quando lhe saltaram as lentes dos óculos e a placa dos dentes aterrou no colo de uma groupie, não tendo depois lata para pedir que lha devolvesse, e que desmaiara depois de ter gritado a plenos pulmões que estava «abençoada» (na língua dela blessed, pois era americana) julgando que tinha ganho um recuerdo (a americana também tinha umas luzes de espanhol) do baterista, o seu ídolo, saber-se-á mais tarde, mas que curiosa e estranhamente ainda era possuidor de dentadura completa, vá-se lá a saber como e porquê...
Apesar do episódio das lentes e da placa, o nosso herói estava contente. Talvez para isso concorresse a máxima que tinha aprendido, logo nas primeiras sessões da meditação zen, que lhe dizia o seguinte: «Nunca desesperes, caso uma porta se te fecha. Logo, logo uma janela se abrirá, mesmo que possa demorar um bocadinho», que julgava já ter ouvido numa outra vida, o que era provável, pois tivera muitas, e a globalização acabava por fazer o resto. Sendo assim, só haveria que encontrar a janela e perguntar-lhe, já agora, onde é que se podiam arranjar novas lentes e colocar uns implantes.

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