Lá longe
Estava com disposição para arriscar. Os resultados dos testes tinham sido bons e achava que era o momento. Dispunha ainda de uns dias de férias e ficara satisfeito com o estado da mochila, que não usava há anos, mas que se mantinha impecável desde que a comprara, numa feira, e de a ter experimentado sistematicamente no trilho dos festivais e acampamentos pela paz e não só… Estava tomada a decisão, portanto.
Quanto à escolha do transporte, estava dividido entre o espírito da aventura e a comodidade. Ambos tinham os seus atractivos, mas teria que fazer escolhas. Talvez um mix de transportes fosse a solução mais indicada, incluindo a pedestre, até para não perder o vale de milhas que tinha ganho num concurso promovido por uma marca de botas. Para se decidir iria optar pelo velho método da moeda ao ar, que estava testado e não precisava de calibração, e nunca falhava nos momentos e nos impasses, existenciais ou não. Por isso, lançou a moeda e saiu cara, decidindo-se definitivamente pelo espírito da aventura. Agora, havia que começar a tratar e a preparar as coisas.
Para a merenda decidira que não contaria com a ajuda da mãe, que estava habituada a prepará-la à sua maneira, mas que talvez não fosse a mais indicada para o percurso e as especificidades da rota. Com o pai era capaz de ter mais sorte, mas tinha que ter cuidado com os conselhos e as recordações de quando tinha estado na tropa, pois o seu programa de «busca do eu», que estava pressuposto na viagem que se dispunha a fazer, era capaz de ser incompatível com marchas forçadas, racionamento de água e dormidas ao relento, onde calhasse, fizesse frio ou calor. Não. As coisas tinham que ser de outra forma e ter em conta as calorias, as articulações e o colesterol, fazendo esforços pela preservação do ambiente e contribuindo para o desenvolvimento sustentável, que também se aplicava ao eu… Se calhar, pensou, talvez fosse preferível perguntar ao primo e à prima, ligeiramente mais velhos do que ele, mas com outra experiência de mundo e de vida, apesar de agora estarem mais aquietados e conscientes de que as coisas tinham mudado. Iria falar com eles sobre esta questão da merenda e, já que lá ia, pedir-lhes algumas dicas sobre a melhor forma de ir até «lá longe», o seu verdadeiro destino, note-se, mas de que não conseguia obter uma localização precisa, por mais GPS ou buscas na Internet que fizesse, nas várias línguas. E este era um problema, bicudo ou rombo não sabia, mas um problema.
Antes de ir falar com os primos tentaria com os amigos saber onde raio ficava «lá longe», se próximo se distante, acedível por mar ou por terra, se com bons acessos ou caminhos de cabra, qualquer coisa ou tabuleta, uma inscrição, uma garrafa de náufrago, um pombo com anilha, qualquer coisa… Até lá, teria que fazer os deveres… E este, o da redacção, não era dos mais fáceis. Começaria assim: «Lá longe é um local muito bonito, quase paradisíaco. Já lá fui.».
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