O clique
O clique deu-se quando deixou de escrever nas folhas soltas do bloco e passou a fazê-lo no computador. O clique tinha sido pequeno e isso surpreendeu-o, pois julgava que iria ser uma coisa mais forte, tipo «CLIQUE!», com maiúsculas e exclamação, e menos como «Cliiiiiiique», sem maiúsculas e sem exclamação. Podia ser um problema de condutividade ou de potência (iria investigar), mas o mais certo era ser mesmo assim. Mas ainda não estava convencido da mudança.
Tinham sido muitos anos a escrever nas folhas. Não tanto como os que tinha a saber juntar as letras, mas alguns desde que o convenceram a tentar ser escritor. E esses eram poucos. Mas era um sentimental e o abandono das folhas pesava-lhe.
Nos anos em que tomara as suas notas no bloco (que de bloco tinha pouco, pois eram só folhas soltas dobradas em quatro), nem sempre tinha sido fácil, pois as folhas escasseavam e nem sempre podiam ser utilizadas. Às vezes, desapareciam.
Até as substituir por outras, pois nunca mais via as desaparecidas, ficava nostálgico pela falta, o que lhe lembrava a efemeridade da vida. Seguia em frente, porém, e resignava-se à perda e ao que pudessem conter: um pensamento, o esboço de uma história, um pseudopoema, ou uma lista de compras do supermercado, minuciosas e frequentes. Tudo se juntava naquelas folhas, perdidas ou mantidas.
Uma vez chegaram a conter a chave premiada de um Euromilhões (felizmente um dos prémios mais pequenos), mas não foi contabilizado, pois não tinha transposto a chave para o boletim. Tinha colocado uma outra e acertara nas estrelas. Não ficou surpreendido, pois sempre tivera talento para adivinhar as estrelas.
A frustração durou pouco (só um bocadinho), rapidamente esquecida pela rotina do dia-a-dia, que não estava dependente do concurso mas do fogão, que exigia um quilo de batatas, uma cebola, duas curgetes, três cenouras e um alho francês, se queria comer sopa. E como gostava de sopa, a escolha era óbvia. E aqui surpreendia-se com uma conclusão profunda: a escrita era importante para as receitas de sopa, pois a transmissão oral dos ingredientes estava a perder-se.
Não compreendia porque se endeusava o caderno. Atribuía isso ao fatalismo, caro aos que escrevem, para fazerem passar uma imagem de incompreensão ou de distanciamento do mundo, a penar miséria ou desconforto pelas ruas ou cadeiras da amargura, quiçá sem a sopa…
Não estava para isso: não havia nada melhor do que o processador de texto!
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