A pilha/premonição
Começara a ler aquele autor e estava orgulhoso. Chegara ao autor por aproximação, inicialmente de longe, depois mais perto, pois tinha alguma dificuldade em pronunciar o apelido do homem, habitualmente confundido com o de um famoso violoncelista, o que originava algumas cenas caricatas quando consultava o catálogo online, pois reconhecia-se como claramente incapaz de interpretar a partitura em si bemol ou ouvir o concerto em lá maior para violoncelo com a Orquestra Sinfónica de Londres, dirigida pelo maestro X, edição Deutsche Grammofone.
A razão para o orgulho era fácil de explicar, agora que começava a incorporar o espírito de escriba marginal. Mas sentia-se um pouco desconfortável, pois mesmo um escriba marginal (parece que sobretudo estes!), têm habitualmente muita leitura e, pormenor nada desprezível!, muita anotação e reflexão sobre os autores que vão lendo, marginais ou não, a maioria das vezes até não, o que não deixa de ser curioso e talvez fique para outras núpcias…
Vinha, pois, a pensar na melhor forma de transcrever tantas e tantas frases, expressões, períodos, parágrafos, páginas inteiras do recém-descoberto e endeusado (estava a exagerar, é certo, mas convinha a fluência narrativa) autor, que chegara à conclusão de que tirar notas em cima do joelho, no célebre caderno de folhas A4 dobradas, que às vezes serviam de suporte à volta de profundas reflexões acerca das três mil e uma formas de confeccionar bacalhau, com ou sem azeitonas, talvez não fosse a forma mais eficaz de vir a alcançar algum relativo êxito enquanto escriba marginal, ainda que mais marginal do que escriba. E concluía facilmente que o melhor seria arranjar um gravador, daqueles pequeninos, mas não tão pequeninos como aqueles dos espiões, que mais do que gravadores parecem é alfinetes de gravata ou botões de camisa, quando não corola de flor a imitar que é flor, ainda que de plástico, mas que é gravador. E de espião. Não, os que queria eram aqueles que os jornalistas usavam (ou seria usaram?), pois com os smartfhones tudo se baralhara, mesmo para fazer e atender chamadas. E era ao estar envolvido neste dúvida que se tinha dado conta de que saíra do autocarro e iniciara a travessia da ponte, que a bem-dizer não era, mas sim uma passagem aérea sobre uma via de circulação de tráfego, concorrida e preenchida, por sinal, e nos dois sentidos, até porque era início do mês e não chovia. E foi então que a viu, no chão, num momento em que tinha deixado de ver o trânsito nos dois sentidos, embora tivesse uma especial predilecção mais para o Sul, porque lhe lembrava a praia e ainda era longe: uma pilha. Parecia-lhe de rádio, mas não tinha a certeza, pois também poderia ser de um qualquer gadget mais avantajado, que os havia, pensava ou acreditava. Do que tinha a certeza era da premonição e disso não tinha dúvidas: para ser escriba marginal teria que ter um gravador. Desses dos de jornalista. Não dos de espião, pois não tinha o curso.
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