Palavras
Tinham-se-lhe acabado as palavras. Ainda pensara telefonar e encomendar algumas, mas acabara por se lembrar de que o serviço só funcionava para pizzas e take-away, que não era bem a situação em que se encontrava, pois tinha lanchado e jantado bem. Não se tratava, pois, de fome, domínio do corpo, como toda a gente sabe, mas de alimento para a alma, coisa mais fina e sensível, quase do domínio do etéreo, mas dado a quebras de tensão e angústias diversas, numa estreita relação com o peso da alma, prévio à ida a um ginásio e cumprimento de programa de treino localizado, com ingestão intensa de líquidos e moderada de hidratos de carbono, necessários, apesar de tudo.
Como se começava a ver (vide parágrafo anterior), os sintomas da falta de palavras eram já visíveis, não tendo funcionado a solução de recurso de outras situações: uma chávena de chá de tília com uma colher de mel, mais vocacionada para os resfriados, é certo, mas que costumava funcionar nas situações de falta de palavras, sobretudo quando tudo estava fechado e não dava muito jeito sair de casa, vestir o casaco ou o impermeável, pegar no carro ou ir a pé. Não, assim não.
Vencidas a preguiça e o desconforto, irmãs do diabo em situações como a que se está a tentar descrever, a solução é mesmo dar «corda aos sapatos» (botas também servem, estando frio ou a chover), com cuidado para não se ir muito longe, pois os níveis de açúcar estão em baixo e o batimento cardíaco está arrítmico. Com um bocado de sorte ainda se encontraria uma loja de conveniência aberta, se entretanto não desapareceram, coisa que não podia garantir porque já não ouvia falar delas há muito tempo. Também, das outras vezes que lá tinha ido, o que queria comprar era uma garrafa de vinho e alguns condimentos, coisas necessárias para uma patuscada, não se lembrando se alguma vez lá tinha ido para adquirir palavras, mas quase tinha a certeza que não. Já que lá tinha que ir, aproveitava para trazer mais uns jornais e uns filmes, embora ainda tivesse uns restos. Na dúvida, era melhor abastecer-se. Mesmo que conseguisse arranjar as palavras, não havia problemas quanto à validade dos filmes. O mesmo já não podia dizer dos jornais, que tinham um prazo de validade menor, sendo aconselhável, por isso, trazer menos exemplares.
Mas a preocupação era com as palavras e com o vento, que podia levá-las… para longe. Antes de sair, tinha que consultar a meteorologia e ver se previam vento. Não queria ser apanhado por um tornado, agora que o clima parecia avariado e estranho e o anticiclone já não era o que era. Tinha que ter cuidado, por isso. E também com o dióxido de carbono, por causa do efeito de estufa. Decidira-se por ir a pé, por causa disso, e também pelo simbolismo, que é uma palavra bonita e que fica bem, assentando como uma luva. Não se previa vento.
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