Neurónios (en passant)
Costumava puxar pelos neurónios ao fim-de-semana. Ao contrário da maioria, que costumava fazê-lo durante a semana, consigo isso só ocorria aos sábados e domingos, momentos em que dispunha de algum tempo para isso, descontando as pausas para outras coisas. Era um programa pensado, baseado nas melhores técnicas de treino e adaptado às suas características psicossomáticas. Tratava-se de uma opção, fundada na Constituição, sem fiscalização de constitucionalidade. Mas com os seus problemas, disso também não se livrava.
O primeiro deles era o do horário de trabalho, uma questão sensível, mais a mais porque a família conta e as transmissões televisivas de futebol estão, cada vez mais, omnipresentes, sugando muita energia e paciência aos neurónios, que têm de vir de algum lado, pois, como diz o outro ou a outra, «não há almoços grátis». Admitamos que sim, que «não há almoços grátis», mas que talvez possa haver lanches ou jantares, até porque são menos e agora o IVA vai descer, mas não para as bebidas, o que acaba por não ser mal para os neurónios, porque ficam moles e se deixam dormir, mas que na opinião deles é um atentado aos seus direitos, liberdades e garantias, o que se lhes reconhece e às vezes dá jeito.
Associado ao horário de trabalho, as negociações com os sindicatos (dos neurónios, está bom de ver), difíceis de agendar porque eram muitos, uns representando uma secçãozita, outros mais abrangentes, com sinapses e interligações entre si ou fora de si, mobilizados, combatentes e representativos (sempre), uns a dizer que sim, outros a dizer que não, e outros a dizer que talvez, que logo se veria e os plenários a fazer também diriam, mas todos unânimes em concordar que o trabalho ao fim-de-semana teria que ser muito, muito bem discutido e analisado, votado, sufragado, aclamado e pago como horas extraordinárias, pois os neurónios eram trabalhadores como os outros, não havendo qualquer discriminação. Alguns, mais radicais, advogavam mesmo o fim do trabalho dos neurónios aos fins-de-semana, pois, segundo eles, os neurónios também tinham família, gostavam de futebol e de beber uns copos, e muitos se envolviam em actividades de apoio à comunidade, sobretudo aos fins-de-semana, que (toda a gente o sabe, incluindo os patrões dos neurónios) é o período da semana em que essas actividades se podem desenvolver e dar frutos, como uma qualquer volta (en passant) pelas terras do país testemunhava e acabava por confirmar.
Não menos importante do que as anteriores, a questão da alimentação dos neurónios era outra dor de cabeça, esta sim com maior incidência no fim-de-semana, pois era um campo fértil para um desbragamento de soluções e de receitas, umas com sal e outras com açúcar, com mais ou menos hidratos de carbono ou de fibras, com sopas ou só vegetais, a favor da feijoada ou do prato vegan, com ingestão de líquidos ou de bebidas só para ter no copo, assim à laia de enfeite e como cenário de festa, boa vida e de glamour…
Até que, aqui chegados, aparece o Poirot e diz: voilá! E o problema das «pequenas células cinzentas» se resolve e o livro se fecha, decretando-se o fim-de-semana para os neurónios, com efeitos imediatos. Bom patrão, este.
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