O dom
Ter um dom incomodava-o. Chegou a pensar marcar uma consulta, mas só lhe garantiam vaga daí a sete meses. Como não tinha que dar a resposta logo, mas passados cerca de dois minutos, uma vez que a chamada fora transferida para outro telefone, resolveu arriscar e dizer que não, pois considerava-se discriminado por não lhe dizerem que só daí a dois anos, como acontecia com a maioria, tivessem dom ou não. Recusou, por isso, e manteve o dom que o incomodava. Depois se veria e talvez uns chás ajudassem como mezinha.
Fora uma boa decisão e os chás eram agradáveis, com sabor refrescante e um travo a frutos silvestres, por acaso com antioxidantes, muito recomendados nos meios onde se movimentava. Mas, quando o efeito passava, o dom continuava a incomodá-lo, algumas vezes levando-o a um desespero que tinha facetas contraditórias, umas entendidas como bucólicas outras como sanguíneas, habitualmente menos, é certo, mas sempre presentes e com resultados mais evidentes, pois costumam extravasar para o exterior, que nem sempre estava limpo e cuidado, mas era o que havia. Tinha que pensar numa solução para o seu caso, chamasse-se dom ou não. E, no seu caso, chamava-se.
Quem o conhecia dizia que isso era de família, por acaso muito conhecida na zona e com influências na capital, resignando-se a viver e a lidar com uma realidade que os ancestrais também conheceram, umas vezes mais, outras menos, não se conhecendo qual a opção mais saudável, pois ainda vigorava um código que se pautava pelo silêncio, mas sempre audível, incluindo pelos surdos. Para quem visse ou fosse mudo, quieto ficasse e acalmado se sentisse que o código também chegava e lhes dizia respeito, não fossem pensar que a luz não era para todos, o que se sabia que era falso e o sol comprovava todos os dias.
Não se conformando com tal destino, acabou por emigrar e fazer fortuna no mercado da compra e venda de gambozinos, certificados e com denominação de origem, reabilitando uma prática ancestral, entretanto caída em desuso, mas a que o seu génio inventivo deitou mãos, patenteando as sacas como património imaterial.
Entretanto, está rico e promoveram-no a ilustre. Para os amigos (e amigas), que são muitos e muitas, continua a ser «o Dom».
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