02 agosto 2015

O artista

Era um artista conhecido e as suas obras muito conceituadas. Sendo uma figura pública, as suas aparições (apesar de raras) transformavam-se num acontecimento. Como nesse dia, em que se deslocara àquele restaurante (uma churrasqueira) do bairro e pediu meia dose de entrecosto, sentando-se numa mesa de canto, ao fundo da sala, pois era tímido. Depois de terminado o café, que bebeu com um cheirinho (oferta da casa), o dono da churrasqueira, que era admirador e coleccionador da sua obra, foi ter com ele para o cumprimentar e apresentar a conta, dizendo-se encantado por o ter ali e que voltasse sempre que quisesse, excepto às segundas-feiras, que era o dia de descanso do pessoal.
Agradecendo a amabilidade e o cheirinho (da garrafa do patrão, note-se, que produzia a aguardente num pequeno alambique, montado no quintal), o artista, que era generoso, resolveu também presentear o dono com uma peça de autor, não sem antes lhe pedir autorização e um guardanapo de pano (papel, não), para limpar as mãos, pois o que iria fazer pressupunha que tivesse que ser assim e não de outra forma.
Conhecedor dos artistas, que eram pessoas especiais, embora um tudo ou nada caprichosos, o dono não levantou problemas e pediu um guardanapo de pano para a mesa 6, que lhe entregou pessoalmente.
Como todos os artistas, o nosso artista transportava com ele o génio e a originalidade bem aconchegados e protegidos contra os resfriados e ou excessos de exposição ao sol, nunca se esquecendo dos utensílios, que faziam a parte chata e trabalhosa do trabalho criativo, fossem eles pincéis, esferográficas ou outros. No seu caso, também um estilete, em cabo de madeira, que costumava utilizar para decorar pequenas peças ou fazer inscrições em troncos de árvores ou canas de bambu (na sua fase zen, sobretudo), que era o instrumento que estava a pensar utilizar na obra que idealizara quando começou a rilhar a terceira costela (eram seis, doze se fosse uma dose).
Possuidor de uma técnica já muito apurada, a execução do trabalho demorou-lhe cerca de uma hora, o que causou algum embaraço aos empregados que queriam arrumar as mesas e dar vazão à fila que se começava a avolumar à entrada, tendo sido terminado com um inconfundível sinal de júbilo por parte do artista, que resolveu brindar com mais um calicezinho da aguardente do patrão.
Mas valera a pena: depois de limpas e de puxado o lustro, as costelas exibiam uma exuberante e trabalhada inscrição, em relevo e com cambiantes de exposição à luz, ilustrando para a posteridade esta peça de autor, hoje em dia exposta no museu nacional, temporariamente cedida pelo seu proprietário, que reservara uma localização privilegiada na churrasqueira, junto do pipo que encimava o balcão.
Para os críticos, que ainda hoje debatem o significado e a importância da inscrição na transformação dos motivos pictóricos e simbólicos na obra do artista, continua o mistério acerca do excerto: «... um tudo ou nada mal passadas...», pois era do conhecimento de todos que o artista, um feroz e entusiasmado consumidor de algas e de sushi, influência do seu período zen, sem dúvida, seria, aparentemente, desconhecedor das subtilezas e dos segredos do preparo da carne em grelha de lenha, o que a referida inscrição punha em causa, como se tornara evidente.

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