A tara
Desenvolvera uma tara. Para os que não acreditavam, aí
estava a resposta ao seu cepticismo: a sua tara crescera, desenvolvera-se e
transformara-se numa bonita tara.
Tudo começara num dia, como o de hoje, com a Primavera já
entrada, como a de ontem. A Primavera chegara de armas e bagagens, disposta a
arrasar. As armas eram as de anos anteriores, mas as bagagens não.
Como estávamos em Março, toda a gente se preparava para os
dias que aí vinham: «manhã Inverno e tarde Verão». Quem achasse estranho que
aprendesse o ditado, que era fácil, e até servia de refrão para cantorias,
sobretudo quando as ocasiões se proporcionavam e as pessoas se dispunham a
cantar.
Vinda a Primavera, que chegava sempre a tempo e com data
marcada, como a de ontem, que chegou cerca das 23h00, no comboio da noite, e
até trouxe um bónus, um eclipse, em rigor ainda com o fato de Inverno, mas
assim como uma prenda que a estação anterior dava à seguinte, o que era elegante
e revelava uma educação cuidada, própria de estações do ano.
Tinha sido bonito, segundo lhe disseram, mas que ele não
vira, pois estava a trabalhar num gancho, actividade que desempenhava para além
da que fazia nas horas normais, de que não se irá falar, pois não está
relacionada com a tara, que foi o que nos trouxe aqui. Não defraudemos os
leitores, por conseguinte.
A actividade de gancho era o que era, como se compreende, mas
tinha as suas vantagens. Uma delas era o salário (melhor do que o outro,
diga-se, até porque era limpo e higienizado). Outra era a de o trabalho ser ao ar
livre, o que não era mau, pois sempre lhe dava vantagem na obtenção de uma tez
bronzeada primeiro do que todos, o que também contava e dava um atractivo
especial ao gancho.
De facto, não era para todos que se estivesse já com um
assinalável bronzeado em Abril, antes das «águas mil», consequência de as
tardes de Março, as de Verão, serem bem aproveitadas. E talvez tenha sido por
isso que, num belo dia, melhor dizendo, numa bela tarde, pois estávamos em
Março, viu, junto a uma moita, aquela que viria a ser a sua tara.
A princípio, não se apercebeu que estava ali uma tara. Só
quando se aproximou é que verificou que a tara tinha sido abandonada, mas
aparentava estar bem tratada. Ficou siderado. Reagiu, contudo, e depois de ter
confirmado que a tara não tinha sido deixada ali por engano nem se tratava de
uma cena para os Apanhados, pegou na
tara e levou-a para casa. Logo explicaria à vizinhança onde a arranjara, o que
aconteceu, e também a vizinhança acabou por se afeiçoar a ela.
Os anos passaram e a tara teve um desenvolvimento comum às
diversas idades das taras: a infância, a puberdade, a adolescência, e a adulta,
onde se encontra agora. Das diversas fases da tara, a da adolescência foi a
mais complicada, mas isso já se estava à espera, e o próprio psicólogo já o
tinha posto de sobreaviso. Tirando isso, nada de mais.
Parece que foi ontem, mas a minha (a nossa, melhor dizendo,
pois a vizinhança também é responsável e ajudou muito) tara está adulta e vai
iniciar-se na vida activa, depois de ter tirado o curso de tara, e sempre com
as melhores notas!
Qualquer dia (que espero ainda venha longe) a tara sairá de
casa. É a vida e também acontece às taras.
Quando isso acontecer, faremos uma festa. Não sei ainda
quando vai ser, mas está garantido que será de arromba, embora sem taradices! Haja
respeito.
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