27 março 2015

O juízo (suspensão d’)

Declaração prévia: «O título é uma charada. Mas é fácil». Fim da declaração prévia.
Aguentara o tempo que julgou adequado. Mas fartara-se. Conteve-se, porém, na sanção que idealizou. Apesar de tudo era humano e devia contas à sensibilidade. Contava pagá-las, era um facto, até porque já tinha rendimento fixo e tinha-se na conta de pagador de calotes. Que no seu caso eram pequeninos, mas calotes. Mas isso ficaria para depois, pois agora não estava com muito tempo e tinha uma sanção para aplicar, escolhida a dedo no catálogo de sanções para a suspensão do juízo. Mas ainda tinha dúvidas. Atribuía isso a uma sensibilidade exacerbada, por excesso de vitaminas, reconhecia-o agora, o que não se recomendava a sensibilidades exacerbadas e era consequência da automedicação, embora em conivência com uma vizinha, recentemente reformada, que descobrira as virtualidades do natural numa visão que tivera, em sonhos, convidando-a a converter-se. O que fez.
Ensaiou uma nova punição, mas o resultado foi o mesmo. O dedo, persistentemente, fixava-se na punição anterior, até parecia bruxedo! Recusou esta hipótese, era óbvio, pois o seu juízo fortalecera-se no método e na explicação científicos, apesar daquele pequeno constrangimento de só acreditar que chovia quando as galinhas tivessem dentes, o que era frequente. Mas isso era pormenor, pequeno também. No resto, que era a maioria dos pormenores, a explicação e o raciocínio científicos eram os reis para explicar a causalidade do mundo, se bem que nalguns lados a alteração do regime, de monárquico para republicano, tivesse originado alguma turbulência, apesar de tudo não imputável ao vento, que era o da História. Estava a divergir, havia que ter cuidado, até porque não estava para ser chamado à pedra por Bruxelas, que era sítio onde nunca tinha posto os pés, mas que continuava a preocupá-lo, não sabia muito bem porquê…
Mas a sanção aguardava, obediente e sossegada. Até parecia um cão. Se fosse um gato já se teria ido embora. Provavelmente. Como era cão, ainda ali estava. Provavelmente, também. Estava.
Eram horas. Chamou o juízo e disse que lhe ia aplicar uma suspensão, pedindo desculpa e solicitando que compreendesse, mas tinha atingido o limite e não podia ser. Reforçou que as suspensões podiam ser úteis, tivesse o suspenso juízo, o que às vezes não se verificava. No seu caso acreditava que lhe iria fazer bem, apesar da suspensão. Escolhera uma suspensão leve, atendendo ao bom comportamento anterior e ao facto de ser o primeiro amarelo. A partir de agora, cuidado! Mais uma suspensão e o caldo estava entornado! Tivesse juízo, pois. Sobretudo agora, que estava suspenso.

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