21 maio 2017

Folha de couve


O telefone tocou. Isso fê-lo acordar, sobressaltado, mas também surpreendido, pois julgava que já não tinha telefone fixo, apenas telemóvel, o que se verificava que não era verdade, com o toque irritante de sempre, que não ajudava e que também o confrontava, pois quase que apostava que o teria mudado, quando ainda o queria manter. Não havia nada a fazer senão atender o maldito, que não se calava. Era a chefe. Começou por achar estranho mas ela tirou-lhe as dúvidas, repetindo, vezes sem conta sobre «O que é que andava a fazer, se não tinha juízo ou qualquer outra coisa parecida!?»... Deixou-a falar, dizendo «Sim, sim, está tudo controlado». Era mentira e ela sabia-o. Estava em falta, acabou finalmente por reconhecer. Não era fácil mas era um facto e, naquela profissão, isso contava. Sossegou-a dizendo-lhe que lhe mandava o texto antes do meio-dia (já eram onze…), mas tinha confiança nas suas capacidade e rapidez de escrita, que já lhe tinham feito ganhar prémios noutras folhas de couve como aquela onde trabalhava agora, como avençado às segundas, terças e quartas, como voluntário às quintas, sextas, sábados e domingos, uma opção que fizera quando se viu sem projectos e a precisar de encontrar um sentido para a vida, de preferência a direito e sem muitos obstáculos… Mas a chefe não estava disposta a largá-lo, desta vez recorrendo às sms, como pôde constatar ao ligar o telemóvel, depois de o ter conseguido encontrar debaixo de uma pilha de roupa vária.
A mensagem dizia «N te esqças do promtdo!!!», acompanhado com aquelas bolinhas amarelas que mostravam uns olhitos e umas boquinhas a fingir, método que a chefe adoptara há algum tempo depois de frequentar um workshop sobre «Comunicação Eficaz e Motivação dos Trabalhadores na Era da Internet», que ela, na sua boa fé, julgava moderno e fofinho, mas que a maioria da rapaziada achava que não, mas não havia nada a fazer pois ela é que era a chefe e a dona da folha, e, quanto a isso, era do mais conservador que havia, mas não se lhe podia dizer pois era muito sensível e facilmente largava uma lágrima, que ela teimosamente reconhecia como um problema de alergia aos pólenes, se bem que também acontecesse em outras épocas em que esse flagelo não é costume aparecer, mas isso eram contas de outro rosário…
Também o mail lhe dava conta do desconforto, dele pela falha, dela pelo prazo, pois recebera um que ela lhe reencaminhara sob o título «Cães e gatos de companhia fundam associação. Proprietários contra», o que ele interpretava como um sinal e um incentivo para um tema que se adivinhava polémico e susceptível de interessar à opinião pública, cada vez mais empenhada nestas questões fracturantes, se bem que os seus temas de eleição não fossem propriamente esses, indo da problemática da apanha do bivalve até à tensão na península coreana, passando também, ainda que mais ao de leve, pelas matérias da gastronomia, ética e afins, com particular ênfase neste aspecto à cultura e à música de assobio, de que se tornara um especialista, pese a imodéstia, nos tempos idos da militância por esses lados, ao fundo, de quem desce...
E com isto eram 11h45… Olhou para o mail e escolheu «Anexar ficheiro». Antes de clicar em enviar, decidiu-se pelo título «A angústia do autor face aos prazos». Pediu um recibo de leitura e esqueceu-se da bolinha. Quanto à folha de couve, não sendo muito dura, fazia uma bela sopa.

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