25 abril 2015

O sniper


Era tudo muito simples: havia bons e havia maus. Aos bons chamávamos «artistas» e aos maus chamávamos «maus».
A convivência entre os bons e os maus não era pacífica, muitas vezes era mesmo assassina, mas com a particularidade de se poder ressuscitar quando as mães, avós ou tias chamavam para lanchar. E se houvesse um depois do lanche ou se fosse no dia a seguir, a troca entre bons e maus também se podia fazer, desde que se quisesse muito ou se fosse obrigado a isso.
Nesses duelos as armas eram letais, mas a brincar. Não se pactuava, no entanto, com falcatruas do género «Não morri, porque só me acertaste no pé», situação grave e altamente atentatória da qualidade da pontaria de quem atirara, bom ou mau, não interessava. Nessas situações, a guerra ou o duelo eram interrompidos para esclarecer se estava morto ou apenas ferido, não havendo aqui preocupações com o facto de ser com mais ou menos gravidade. Esclarecido o imbróglio, o duelo ou a guerra continuavam, até ao extermínio da maioria ou se acabarem as munições, o que raramente acontecia, porque costumavam ser inesgotáveis.
Nestes cenários de mortandade fictícia todos tinham as suas armas de eleição: paus, bengalas, guarda-chuvas, pedras com formato de pistola, espadas, pistolas e espingardas de brincar, fisgas ou zagaias artesanais.
No seu caso, a arma preferida era uma bengala, que reunia todas as características de uma espingarda de precisão, destinada para o combate à distância, e que até tinha na ponta uma borracha que se parecia mesmo com um silenciador, servindo para matar maus ou bandidos sem barulho. E muitos se terão matado então, se bem que as telhas e as esquinas também tivessem sofrido o seu quinhão, pois se tratava de um cenário de guerra ou guerrilha urbana, quando descobriu que tinha sido sniper, mesmo sem o saber, nos seus primeiros anos de vida de brincadeira.

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