A encomenda
Como todas as tardes, dava uma vista de olhos pelo jornal. Relanceava os olhos pelos títulos, detia-se numa ou noutra notícia e seguia em frente. Nesse dia, nada fazia prever o contrário dessa rotina. Mas a surpresa estava lá, numa das páginas pares, as mais difíceis de prender a atenção, por isso mais baratas para a publicidade. Mas o seu olho era um olho treinado. Sobretudo para determinados assuntos. Para outra pessoa qualquer, a matéria seria insignificante. Para outras, como era o seu caso, o texto era como se estivesse escrito em letras garrafais, de cor vermelha. Matreira como era, contudo, não se convenceu à primeira nem à segunda leitura, mas só à quinta. Mas convencera-se e decidira avançar.
Apesar de codificada, a mensagem era explícita para quem a sabia interpretar. Nem precisava da chave. Fez um telefonema para o fornecedor habitual, que não estava. Tentou nas páginas amarelas e também não teve melhor sorte. Teria que improvisar e socorrer-se do que havia, que não era muito. Mas julgava que chegava e o fim justificava os meios. Seria assim e não se falava mais nisso. Quando fizesse o relatório, veria onde colocar as vírgulas e os pontos finais. Os pontos de interrogação ficariam para mais tarde e para uma abordagem mais fina, provavelmente com os óculos.
No dia aprazado, estava tudo pronto para o envio. Conferiu tudo. Satisfeita, embora ansiosa, deslocou-se aos correios, cumpriu os procedimentos e pagou (não sem dificuldade, é certo, pois esquecera-se do cartão de crédito e só dispunha de umas moedas, que uma boa alma lhe tinha depositado na mão depois de a ter ouvido cantarolar uma ária de Puccini, junto ao metro). Pediu um recibo e abandonou a estação dos correios. Dirigiu-se para o metro e resolveu tentar a sua sorte, desta vez com Wagner. «Não foi mau», escreverá mais tarde nas memórias, e acredita-se que sim, pois as memórias não costumam mentir. Exagerar também não, mas isso é conclusão para os especialistas…
Os dias passaram-se como é habitual suceder: a claridade sucedendo-se à escuridão, ou vice-versa, com pausas para as refeições e outras necessidades. No nosso caso, falamos de três. Podiam ter sido mais, mas os correios tinham-se esmerado. Apenas com um senão: fora tudo devolvido. Incrédula e furiosa, fez uma série de chamadas para quem de direito. Em todas, respondendo à incredulidade e ao tom furioso, a resposta era sempre a mesma: o procedimento em vigor. Quando quis saber mais, lá lhe explicaram «o procedimento»: não cumpria os requisitos de processamento, segundo a entidade reguladora. Ficou desconsolada e jurou para nunca mais. Ninguém acreditou, até hoje. Junto ao metro, começa a ouvir-se uma ária de Puccini…
Etiquetas: Historieta
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