22 março 2020

Da sueca a Hollywood

O jogo de sueca chegara ao fim. Não havendo empates (nunca havia!), o desfecho era decidido segundo a máxima do matar ou morrer (sem exageros, é certo, que a vida não estava para essas coisas...). Mas as coisas eram o que eram e a equipa perdedora amouchava à vergonha de uma bandeira, nada a fazer, excepto pagar a conta. Tristezas não pagam dívidas, mas sim o dinheiro... Era dos livros e dos ensinamentos da vida.
Não tinha sono. Mesmo que tivesse, a dica que recebera aguçara-lhe o espírito.
Puxou pela corrente do relógio (ela também uma lenda, sabia-o bem) e confirmou as horas: 2h45. Dispunha de algum tempo. Iria a pé. Com cautelas, mas a pé.
Estava atrasado com o artigo. As oportunidades não eram famosas, naqueles tempos frios e sombrios, mas a dica poderia ajudar a compor a coisa, mais não fosse pela fama e por alguns cobres que cairiam no bolso. Chegado lá, se veria.
Um leve restolhar alertou-o. Pôs-se à espreita e aguardou.
Uma luz ténue começou a aproximar-se, como se caminhasse ou levitasse. Segundos depois, projectou-se na sua frente. Dominando-se, soletrou a senha combinada: «Por-aca-so-não-tem-lu-me»?
A princípio, nada. Depois, uma resposta:«te-nho». Tranquilizou-se. Reconhecera quem tinha à sua frente. Mais velho, sim, um pouco mais enferrujado, não era difícil, mas com a pose altaneira que o tinha celebrizado. À sua frente, o Candeeiro do Pátio das Cantigas! Não havia tempo a perder. A oportunidade era de ouro e não podia ser desperdiçada. Tirou o bloco de notas do bolso das calças e atirou a primeira pergunta:
_ Boa noite, Candeeiro. Obrigado pela oportunidade e pelo exclusivo. Podemos começar?
_ Alto aí, amigo! Primeiro, o dinheirinho. Depois, o calendário. Os direitos de autor, por último.
_ Tudo bem. Quando ao calendário, só arranjei com paisagem dos Alpes. Serve?
_ Não me arranjas nada da Playboy...?
_ É difícil... Pode ser um com uma candeeira?
_ De que mês?
_ Junho, talvez.
_ E quando é que mo entregas?
_ Amanhã. Mando cá um mensageiro.
_ Pode ser. Então, diz lá?
_ Depois do Pátio, falou-se de uma ida para Hollywood. Confirma?
_ Não. Espanha, só, mas por pouco tempo. Chegou a falar-se na Rússia, mas não deu. Fecharam a fronteira.
_ Falemos do Pátio, então. Na celebérrima cena com o Vasco, parece detectar-se ali um toque de surrealismo, quiçá mesmo um piscar de olhos ao modernismo. Era essa a intenção?
_ Não, pá. Era um quadro local. Só as roldanas é que vieram de fora. O resto não.
_ À conta dessa cena, supomos, fartou-se de dar autógrafos... Lembra-se de algum em particular?
_ Autógrafos não. Era mais acendalha para cigarros... Sim, ao Leão da Metro.
_ Ao Leão da Metro!?... Mas ele fumava?!...
_ Na altura, sim. Depois, largou. Mas eu não.
_ Também fuma?
_ Nos dias de festa. Como o de hoje.
_ Mas hoje é algum dia de festa...?
_ Sim.
_ Qual?
_ O dos Óscares.
_Está nomeado?
_ Não. Mas vou estar?
_ Quando?
_ Quando o artigo sair. Boa-noite.



(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp. 102)


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