28 março 2020

A fuga da boca


A Boca fugira-lhe para a Verdade. Não se tratava de uma mera fuga de casa, com retorna passado pouco tempo. Não, a fuga para a verdade era algo mais complexo. Havia que explicar porquê.
Que a Boca andava insatisfeita era voz corrente. Várias tinham sido as vezes em que se queixara e ameaçara com medidas drásticas. Que iam sendo proteladas... Continuava-se a não lhe dar ouvidos, atribuindo-se esse desejo à idade ou a distúrbios hormonais. Mas o problema subsistia...
E acabou por se precipitar. O momento determinante foi numa sexta-feira, ao cair da tarde. A Boca estava a preparar o jantar e bateram à porta. Quando a abriu, o sorriso rasgado da Verdade insinuou-se-lhe e transpôs a porta, entrando para a sala. O baque na Boca foi tremendo, sabendo-se agora que foi fatal. Depois da conversa, que se prolongou algum tempo, um convite para uma saída, para beber um copo.
A Boca ficou a pensar sobre a conversa que tinha tido com a Verdade. Ela tinha razão, não em tudo. Na maioria tinha. E era descarada, notando-se que ali havia muito mundo... Com sentido de humor também, às vezes negro, noutras inconveniente.
Não demorou muito a aceitar o convite para a saída.
Tinha sido uma noite agradável. A Boca e a Verdade pareciam almas gémeas, próximas que eram. Planos para o futuro alguns, a começar já. E a fuga ocorreu.
A fama da Verdade era conhecida. Por boas ou más razões, havia sempre mais um acrescento. Que era dura, se sobrepunha a tudo, descarada, volúvel por opção e capricho. Fosse pelo que fosse, o certo é que fascinou a Boca... Que foi atrás dela e por lá ficou. Mesmo sem dentes.

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