08 fevereiro 2020

O pente

Deram-lhe um pente e disseram-lhe para construir uma história. Não deixava de ser irónico, naquelas circunstâncias, que lhe pedissem uma coisa daquelas. Um pente?!... Para que raio precisava de um pente, agora que estava com o cabelo mais rapado do que a lâmina da máquina permitia? Para além disso, como é que se construía uma história com um pente? Ainda se fosse com um lápis, um papel..., mas com um pente?!...
A primeira reacção fora de perplexidade, como se previa. Não acontecer é que seria estranho. Começava a habituar-se a um mundo diferente daquele a que estivera habituado. Nem melhor nem pior, mas diferente. Muito diferente. Tinham-no avisado, recordava-se, e lá dentro tinham-se encarregado de o evidenciar, logo de início, por via das dúvidas. E onde um pente desempenhara um papel, quem diria?...
Lembrava-se do primeiro dia, logo pela manhã, quando lhes perguntaram como é que quereriam o cabelo, «se à moda, se à antiga». Parecia uma pergunta retórica, feita assim, talvez para que se sentissem à vontade (quem sabe?), não podiam ver-se as coisas de forma turva ou sinistra, havia que dar o benefício da dúvida, afiançava-lhes a racionalidade a que vinham habituados, não poderia ser de outra forma. Mas a dúvida faz parte da razão, habita com ela, convém não esquecê-lo, e ainda bem que assim é. Por ser assim, quando se tratou de responder uns escolheram «à moda» e outras «à antiga», como se se pudesse jogar abertamente com a situação e se cobrissem todas as opções, julgava-se então, não sem um sorriso, e a racionalidade aplaudia, embebecida... E o sistema fez-lhes a vontade, sem excepção, e premiou-os a todos com um corte à escovinha, «um pente 0», no jargão do lugar, para demonstrar quem mandava e como é que se mandava. Fora a primeira lição, paga sem ou pouca contestação e com algum cabelo, na verdade, mas a todos cabendo um quinhão, muito ou pouco, mas um tributo à vida nova, que o sistema queria que começasse bem e à sua maneira, se possível. E assim era.
O pente podia ser visto, pois, como uma metáfora: lá fora alindava, cá dentro nivelava. Lentamente, muito lentamente, o individualismo que se trazia nos ossos começava a dar lugar a outra coisa, chamasse-se ela «espírito de corpo», «camaradagem», «irmandade» ou outra coisa que não cheirasse a próprio, individual ou quejandos. Mas continuava sem saber como lhe servia para a história. E o tempo urgia. Naquele lugar, urgia sempre.

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