10 março 2018

Vazio (existencial, talvez)

Pancadas persistentes na porta, depois de terem sido ouvidas no soalho, acordaram-no do seu sono. Estremunhado, confuso e mais ou menos mal-disposto lá foi abrir a porta a quem assim batia com insistência, se bem que com alguma melodia. O batedor não era um, mas dois, daí talvez a impressão de melodia: marido e mulher, já entrados, e conhecidos pela rabugice. Como se previa, entraram a matar: que assim não podia ser; que lhes estragava a pintura e os móveis; que não os deixava descansar sossegados; não podia ser, iriam convocar o condomínio e fazer queixa. Não se surpreendeu com a queixa. Já com o papagaio fora a mesma coisa, com a bateria, então, nem se fala!... Iria ver do que se tratava, que ficassem descansados. Tinha as suas suspeitas, mas inclinava-se mais para o vazio existencial, que alastrava, reconhecia. Tentara contê-lo com uns papéis e umas bacias, mas não estava a resultar. Precisava de alguém que percebesse disso, não sabia bem é quem... Quando comprara a casa apercebera-se de qualquer coisa. Perguntara ao vendedor mas ele tranquilizou-o: que eram humidades e nada que uma lixadela e uma pintura não resolvesse. Em contrapartida, dizia ele, que apreciasse a vista e lhe dissesse se não era uma coisa em grande, quase do tamanho de um apartamento na 5.ª Avenida ou nos Campos Elísios! Ser, era, não havia dúvidas. Mas a sensação persistia. E avolumou-se com o tempo, apesar das lixadelas e das demãos, algumas delas com primário. Nada parecia resultar. Tentou a abordagem próxima, junto da vizinhança, mas a maioria fazia de conta que não o percebiam e que falasse mais alto (ouvia mal, a maioria deles). Quiçá recorresse a uma solução daquelas que eram apregoadas como milagrosas, mas que tivesse cuidado, diziam-lhe, pois os aldrabões eram muitos. E pagavam-se bem! Não sabia bem como resolver isto. Logo agora, que estava a preparar-se para dar um salto no escuro e a perspectivar uma carreira internacional, precisamente em hermenêutica do escuro. Não, assim não podia ser. Pensando bem, talvez uma dieta rica em fibra e aminoácidos resolvesse o problema. Talvez resultasse... Assim como assim, o vazio estava magro como um cão. Mal não faria.

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