O arauto
Estava a pensar seriamente em iniciar uma carreira como arauto. Lera algures que era uma carreira privilegiada e com futuro, de emprego certo. Poderia ser desempenhada nos mais diversos sectores, com predomínio para os sérios. E isso agradava-lhe, embora admitisse desempenhar funções também nos não sérios, em caso de necessidade ou por espírito de aventura. Nunca se sabia, mas tinha que manter o espírito e a mente em aberto, talvez o único senão para a função de arauto, mas estava certo que acabaria por habituar-se.
Começara a notar a apetência para arauto logo na universidade, recordava-se agora, pois conseguia antecipar e anunciar com alguma facilidade os desfechos de chumbo (maioritários), não ao alcance de todos. Era uma tendência que começava a manifestar-se para aí em março, mas nem todos se apercebiam dos sinais (que já lá estavam, note-se), pois andavam misturados por camadas de rapioquice e de palpites sobre o mundo da bola, numa salgalhada pouco adequada a um arauto responsável, qualquer dia com responsabilidades familiares e ou sociais. Teria que ter juízo, que era uma coisa que podia dar jeito caso quisesse ser arauto, embora também houvesse uma corrente que advogasse precisamente o contrário, considerando a existência de juízo como um manifesto e evidente sinal de falta de competência para o exercício de funções como arauto. Era uma linha de pensamento radical, como se comprovava, mas que tinha os seus seguidores e seguidoras, mais daqueles do que destas, pois a matéria e o assunto «arautos» tinham predominância de género, algo a rever talvez numa próxima revisão constitucional…
Apesar dessa apetência, o que ele não podia prever era o que se seguiu, por responsabilidade do pai, ele próprio um arauto de primeira, só que mais maduro e experiente: uma guia de marcha para o mundo das obras, sem desvios e em força!
E assim se passaram os anos. Mas a vocação persistia, só que escondida pelos baldes de massa e os muros de tijolos. Mas estava lá. À espera, pois era manhosa…
E o dia chegou. Mais cedo, pois já estávamos na hora de Verão. Apercebeu-se disso quando olhou para o relógio e viu as horas. Outros poderiam ficar apreensivos, mas ele não. Apesar de estar em cima da hora, sabia que o comboio habitualmente chegava com alguns minutos de atraso, facto que o levava a admitir, como dúvida pertinente (carta de alforria para qualquer dúvida que queira ostentar o nome), se não seria melhor adoptar o horário do atraso em vez do da tabela, pois era menos enganador para o cliente, que tem sempre razão. Por isso não se preocupava. E tivera razão, pois quando chegou à estação o comboio tinha sido suprimido. Não se incomodou com o atraso de ter que ficar à espera e extraiu o que havia a extrair do episódio: a sua vocação para arauto voltara! É certo que ainda precisava de uns retoques. Nada que uma demão não resolvesse…
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