Espiclondrífico
Tinha aprendido que as coisas deviam começar devagar, sendo aconselhável explicar o contexto, sobretudo para as distraídas ou os distraídos, bem como fazer uma declaração de interesses, contribuindo para a isenção e a interpretação do que se lia ou ouvia.
Era uma pessoa de hábitos e gostava. Para além dos hábitos triviais, como comer e dormir, tinha alguns mais incomuns, como ir a Marte no comboio das 3h15 e fazer a cama. Estas duas categorias de hábitos, os triviais e os incomuns, ocupavam os extremos do seu universo de hábitos, existindo também uma zona intermédia, a dos hábitos nem triviais nem incomuns, chamada «ao correr da pena».
Na zona ao correr da pena, delimitada pelos paralelos do dito e do não dito, os hábitos tinham aquela singular característica de não serem triviais ou incomuns, como se disse acima, mas a puxarem alternativamente para cada uma destas características, mais incomuns das 9h00 às 17h00 e mais triviais das 18h00 em diante, o que se compreende. Das 17h00 às 18h00 fazia uma pausa (ela própria um hábito) para comer uma maçã e pensar na vida.
Após ter começado devagar, explicado o contexto e feita a declaração de interesses, facilmente se conclui (mal seria!) que a descoberta da palavra que serve de título e de mote ocorreu na zona de hábito ao correr da pena, subsistindo a dúvida, no entanto, se ela terá ocorrido antes ou depois da ida a Marte no comboio das 3h15, que é pontual.
Surpreender-se com palavras que desconhecia, alguma vez lera ou ouvira falar era consequência de um hábito da zona ao correr da pena, a consulta do dicionário, a maioria das vezes on-line, pois considerava-se um moderno, mas também com recurso ao de formato em papel, por razões de ordem sentimental. E aqui residia uma saborosa contradição: ser um hábito, o consultar o dicionário, que permitia a descoberta de algo novo ou desconhecido (o anti-hábito por natureza). Perspectiva interessante, se calhar a necessitar de aprofundamento e de reflexão. Talvez na próxima viagem a Marte de comboio...
Até ao momento da sua descoberta, desconhecia, nunca ouvira falar nem ler tal palavra, de «origem obscura», justificava-lhe o dicionário, e que significava essa coisa simples de ser «estranho ou extravagante = esquisito». Mesmo com a ajuda do dicionário, a sensação de estranheza não se tornava mais fácil ou amigável, pois a pronúncia e a própria combinação das letras era condizente com o significado. Era um facto.
Mas as vantagens também eram evidentes: mais uma palavrinha para o bornal das inesquecíveis, apesar da pronúncia e das sílabas.
Não deixava de ser uma sensação agradável, provavelmente nunca como a de Arquimedes com a Eureka! (até pela inexistência da banheira), mas com um efeito semelhante, ainda que sentado e em frente de um computador. Curioso como estas ligações se faziam, do Arquimedes para os tempos actuais, e da Eureka! do dito para o «Espiclondrífico» de agora…
A descoberta da palavra e do significado de Espiclondrífico não deixavam de ter os seus encantos, ainda que só ele os visse.
Primeiro que tudo, o sainete que representava a sua utilização, muito mais sofisticada do que os vulgaríssimos «estranho», «extravagante» e «esquisito». Aplicando-o, rapidamente se poderia ser catapultado para o domínio do paradoxal e do inovador, quase a atingir o patamar do esotérico, que era um patamar dificilmente alcançável, sobretudo nos meses de Verão.
Depois, a pronúncia. Com mais ou menos acentuação ou arrastamento das sílabas, o mais certo era ser-se considerado um poliglota com acentuado domínio das línguas que se falam mais para o Este da Europa, o que não era para todos. Mesmo que se atenuassem os efeitos da pronúncia, era pouco crível que a associação não se fizesse. Em dias de austeridade, então, era certo e «fatal como destino», frase feita que dá jeito nesta altura do texto, pois se está a correr perigosamente o risco de ele estar a descambar para algo que não se entende. Mas eram riscos do ofício, habituais em quem se põe a escrever e não tem plano ou coisa parecida.
Tomar nota: não escrever sem plano ou coisa parecida! Também serve de final.
Estranho?...
Extravagante?...
Esquisito?...
Espiclondrífico, talvez.
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