Inspiração
Tinha falta de inspiração. Nunca se preocupara antes, mas agora as coisas estavam cada vez mais difíceis. Desconhecia se era um problema comum ou coisa da idade, mas alguma coisa seria. Por via das dúvidas, coisa de que padecia muito, decidiu ir ao médico. Mas isto provocava-lhe outro problema: nunca fora ao médico! Agora tinha duas preocupações: falta de inspiração e nunca ter ido ao médico. Corria o risco de ficar num impasse. A acontecer, seria uma terceira preocupação. Pediu ajuda a quem passava na rua. Àquela hora, havia muita gente. Receou que nem todos fossem de confiança para se lhes confidenciar a falta de inspiração, mas talvez servissem para indicar um médico. Sobre o impasse teria mais cuidado, mas julgava que o problema, por agora, estava ultrapassado. Pediu, pois, que lhe indicassem um médico. Pediu por favor, não esquecendo as normas da urbanidade, e ficou a aguardar que lhe respondessem, se possível indicando a rua, o número da porta e o andar, pormenor necessário atendendo à rua onde se estava, cheia de prédios altos, dejectos de cão e farmácias. Se fosse na rua a seguir, que não conhecia mas de que tinha ouvido falar, o cenário já seria diferente, pois era constituído por paisagens bucólicas, casas de piso térreo e espaços a perder de vista. Estando numa rua de farmácias, a perspectiva de que lhe indicassem um médico aumentava. Os dejectos de cão poderiam ser um entrave, mas tinha confiança nos seus olhos e no cuidado que punha ao andar. É certo que a desconformidade em relação à posição erecta tinha-lhe alterado, ligeiramente, a orientação da coluna, que começava a apontar (agora, perigosamente!) para o chão, correndo o risco de poder vir a tombar, situação que julgava não vir a acontecer tão cedo, talvez mais para a tardinha… À pergunta que fizera «Que, por favor, lhe indicassem um médico», contudo, poucos ou nenhuns lhe davam resposta. Não levava a mal, pois tinha uma costela filosófica que ajudava a que isto fosse encarado como normal, mesmo correndo o risco de ir contra as normas da urbanidade, coisa que poderia ser considerada de somenos, mas que lhe dizia muito, sobretudo nos tempos de crise, como pareciam ser aqueles que agora se viviam… Alguém se apiedou de si e respondeu-lhe para ir trabalhar, conselho que agradeceu, mas que não respondia ao que pretendia, que era um médico, pois tinha falta de inspiração.
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