24 janeiro 2015

O método

O método de criação devia ser o mais puro possível, sem intermediários. Procurava ser coerente, pois isto de ser criador a isso obrigava. O método nem era muito elaborado, mas parecia-lhe que sim, que o era. Até determinada fase da vida acreditou nele, depois deixou de o fazer, embora não tivesse perdido a fé. Era muito simples, no entanto, embora se pudessem descortinar algumas influências de um misticismo difuso, o que poderia dar a ilusão de alguma complexidade, ligeiramente a roçar o esoterismo, mas só mesmo a roçar e de longe, à laia de platonismo...
Mas em que consistia o método, afinal de contas? Como se disse, era simples: consistia em deitar-se numa cama (ou numa enxerga, se quisermos e para reforçar a componente mística), dormir, não saber se se sonhou ou não, acordar e esperar o momento, mais ou menos 2 minutos e trinta e sete segundos após o acordar, o chamado «momento criador», aquele momento mágico prévio à micção matinal, carregado de um simbolismo nem sempre entendido, nem por estudiosos, pela  plenitude das suas manifestações, às vezes aparecendo sobre a forma de uma palavra, uma frase, talvez duas ou três, uma imagem, uma anedota ou a cair para lá, uma música , uma cara conhecida ou a de quem tínhamos perdido o telemóvel ou o afecto, um filme, um livro, ou a qualquer outra coisa que nos impelisse para o gravar na pedra ou no suporte, qualquer que ele fosse, sob risco de perda para sempre ou apenas nesse dia... E dar à perna, o mais rápido que fosse possível e sem infringir as regras do código da estrada ou das pistas de tartã, evitando (sempre!, sempre!, sempre!) os intermediários, em papel ou noutra forma qualquer, que conspurcassem a transmissão pura de matéria-prima «criacionae» para o mundo dos que seriam seus leitores, entusiastas, furiosos, apaniguados ou tão chochos quanto ele, que os havia e num número insuspeito, vá-se lá a saber porquê... E a corrida lá se fazia, umas vezes assim-assim, outras nem por isso. E o resultado da corrida, como é fácil de prever, não podia ser outro, se não este: uma grande, enorme, maciça perda da matéria-prima «criacionae», a seiva que iria vivificar e rejuvenescer uma vida ou mais, uma arte, um estilo, um país ou um status quo dado à mandriice e já sem fôlego... apesar de nem tudo ser mau, como atestavam os sucessivos recordes que obtinha nas provas de velocidade...



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