14 novembro 2020

À procura da paisagem interior - amostra 5

Não é surpresa a dificuldade, grande ou pequena, em adaptar-nos a novas regras, muitas delas mudando a uma velocidade estonteante. Para o bem ou para o mal, somos animais de hábitos. E esta era a situação que se verificava agora, num momento particularmente delicado, sujeito a muitos vicissitudes e cambiantes... Mas não se pode ou deve ficar parado... Enquanto assim pensava, entrara-lhe no mail uma mensagem estranha da PI, o que não era habitual, pois as comuns eram do género: «Passa por cá e traz uma garrafa» «... ou um raminho de salsa» ou «... detergente para a máquina», e esta era um tudo ou nada esotérica, do género daquelas que ocorrem em determinadas épocas do ano ou da fase da vida (a todos, note-se, e para que não haja dúvidas), que revelava alguma apreensão, para não dizer perplexidade, exigindo um apurado trabalho de exegese hermenêutica e, eventualmente, uma ida a casa dela, e ver se tudo estava em ordem ou se era preciso alguma coisa... Como era típico na PI, quando se punha a cogitar e a exprimir os seus pensamentos e ou reflexões para o formato escrito, o estilo era o que menos a preocupava, saindo mais ou menos à pressão e conforme as coisa apareciam à porta da consciência, como naquela que acabara de receber: «Não se sentia particularmente inspirada. Deu uma vista de olhos pelo dicionário, mas não resultaram melhorias. Procurou fazer uns alongamentos, mas os verbos começaram a chiar e a gemer. Os substantivos, estiraçados no sofá, trocavam mensagens com as interjeições. Lá fora, ouviam-se os cânticos dos pássaros, mas era a fingir... Escrever não é difícil: juntam-se as letras e já está. Não acredita...? Está desconfiado...? É normal. Gostava de escrever melhor...? Faça o seguinte: Porque escreve? Por não saber desenhar. Porque pinta? Por não saber cantar. Podes passar por cá?...». Olhou para o relógio e pensou que ainda dava, deixaria as leituras para a parte da tarde...

«Estou angustiada, mas apenas o suficiente», recebeu-o assim, depois dos rituais beijos à la francese. Estar angustiada o suficiente era, digamos, o estado natural da PI, a sua natureza essencial, daí que não fosse preocupante. Sendo assim, procurou saber o que é que pretendia com aquela mensagem, razoavelmente estranha, se estaria tudo bem ou se haveria necessidade de fazer alguma coisa, que estivesse à vontade, era para isso que ali estava... Rindo-se, disse-lhe que era um tonto mas que estava tudo bem... E rematou: «Está descansado. Apenas preciso que me caves a parte da frente do jardim e que penses como é que são as coisas, agora que entraste nos meandros das hermenêuticas... Au revoir!».

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