04 abril 2020

Os genes, esses escultores...

Muitas vezes nos interrogamos sobre a influência dos genes familiares na nossa vida. Mesmo que saibamos que o caminho se vai fazendo por nós, a pergunta aparece de quando em vez. Era algo em que pensava amiúde. Calhando, talvez a reflexão acabasse por lhe proporcionar um grosso volume de memórias, logo se veria se algum editor lhe pegaria... Um toque da campainha despertou-me destes pensamentos. Era estranho. Talvez não, caso se tratasse de uma fonte ou de uma dica... Fui ver: à porta ninguém, confirmado pelos cães, que se mantinham aninhados e a dormir. Espreitei para dentro da caixa de correio, por via das dúvidas. Um envelope A5, daqueles dos cartões de boas-festas, estava lá. Abri-o. Em vez do cartão, uma folha dactilografada: «Local X, mesa n.º Y, às 22h30, leve uma cabeça de alhos». As minhas desculpas, leitores, mas a ética profissional obrigou-me sempre a não revelar as fontes, os protagonistas e os locais (sempre assim foi) e não era agora que iria mudar... Sabia do que se tratava. Lá estaria.
O local era igual a tantos outros: umas mesas, alguns clientes e um quadro bizarro, reproduzindo um cenário de café ou de bordel, não se percebia muito bem, mas que o dono garantia como genuíno, supostamente pintado por ele aquando de uma temporada no exílio, por razões obscuras, murmurava-se, actividade artística que lhe terá permitido subsistir nesse tempo, pese embora a técnica e a perspectiva não fossem muito canónicas, o que não surpreendia, pois tinham sido apreendidas no espaço de três dias e nos intervalos de sessões de copos com pintores, esses sim, afamados... mas adiante. Aproximou-se da mesa. Quem ia entrevistar sabia quem eu era. Dispensavam-se as apresentações.
_ Boa noite. Como vai?
_ Estou bem, obrigado. Queria pedir-lhe só um favor.
_ Diga.
_ Que a entrevista não demore muito.
_ E isso porquê?
_ Apesar de a conceder com gosto, tenho algumas limitações quanto à duração...
_ Por causa daquela questão da luz, suponho...?
_ Nada disso!... Não gosto de me deitar tarde. Só isso.
_ Ah!... Pensei que fossem os genes... Está combinado. Podemos começar, então?
_ Faça favor.
_ Como é isso, de ser um trineto afastado de um personagem famosíssimo?...
_ Como é de prever... uns dias melhores, outros piores... Mas aprendi a lidar com isso e até a gracejar com a situação, mais maduro. Dei a volta por cima.
_ Quer dar-nos um exemplo?
_ Pode ser. Será que os seus leitores vão perceber ou é necessário fazer um desenho...?
_ O amigo tem sentido de humor, nota-se... Reminiscências do triavô, talvez...?
_ Penso que não... Se tivesse que indicar alguma referência, diria que era mais do cinema e da banda desenhada. Alguma coisa da tv, também. Nisso, a família está inocente.
_ Não se esqueça do exemplo...
_ Ah! tem razão. Era assim: alguém cortava-se, por exemplo, e perguntava: «Há pensos...? Não...? Então, tragam-me aí o vampiro, ah, ah, ah!»... coisas assim... Garotadas. Não era por mal.
_ Não levava a mal...?
_ Não. Podemos acabar...? A questão das horas, sabe...?
_ Sim, senhor. Tive muito gosto. Uma última pergunta, pode ser?
_ Pode. Mas só essa.
_ Para que é que quer a cabeça de alhos?...
_ Para fazer uma açorda. Até qualquer dia.

(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp. 17)

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