Tudo de bom
A suspeita bateu-lhe à porta. Como não estava à espera, demorou a abri-la. Ainda pensou em fazer-se de morto, como nos filmes e nas novelas, mas abandonou a ideia, pois quem batia à porta podia não ficar convencida e continuar a tocar, obrigando à intervenção da porteira, apesar da surdez, algo que não a impedia de ouvir a campainha, sobretudo se o toque fosse persistente e continuado, e que isso ocorresse na parte da manhã, pois de tarde era mais difícil, devido ao hábito que tinha de dormir uma sesta. Nada a fazer, portanto. O melhor, mesmo, era abrir a porta. Veria o que a suspeita queria.
Enquanto aguardava, rememorou o caso que tinha em mãos. Não era dos mais complicados, concluía, mas era conveniente ter em conta alguns detalhes, mais do domínio da fantasia, é certo, mas sempre detalhes. E, na sua profissão, os detalhes eram o busílis da questão. Esquecê-los não era boa ideia. Sempre que o tinha feito tinha-se dado mal e não queria que voltasse a acontecer. Teria cuidado, pois.
Ficara intrigado quando a suspeita lhe telefonara, horas atrás, e lhe tinha perguntado como é que ia a vida, se tudo estava a correr bem e se as perspectivas eram boas. Mais do que intrigado ficara perplexo, convém dizê-lo, quer pelo contacto e as preocupações da suspeita, quer, sobretudo, pela forma como se despediu, desejando-lhe «tudo de bom». E fora esta expressão que o pusera de sobreaviso (sinal preocupante) e indiciador de que alguma coisa de muito sério poderia estar em marcha. Até então, sempre se habituara a ouvir os votos de «tudo de bom» nas conversas entre transeuntes, cara a cara ou pelo telemóvel, a respeito de um episódio triste ou alegre, por ocasião de celebração ou de momento funesto, um verdadeiro «tudo em um», com direito a promoção e replicação diversa e variada. Ouvi-lo assim, da boca da suspeita, era mais do que duvidoso. Teria que ter cautela, pensou.
Ainda dispunha de algum tempo, pois morava num 7.º andar, sem elevador. Confirmou a localização da arma e verificou os sistemas de alarme e de intrusão, não fosse necessário ter que os accionar. Estava tudo bem e saiu pela porta de emergência.
Quando chegou ao corredor, depois de uma extenuante caminhada de 7 andares (mas que mais pareciam dez!) a suspeita dirigiu-se à porta e verificou que nesta estava afixado um papel, colado com fita-cola, que dizia: «Cara suspeita, Os meus cumprimentos e passe bem. Tudo de bom».
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