09 fevereiro 2016

Aguada


A história é inventada mas as personagens são reais ou vice-versa. Um começo destes atribui responsabilidades, o pior é o que se segue. E o que se segue ainda não é claro, correndo o risco de vir a ser confundido com uma tolice (o que não seria mau, pois estamos no Carnaval), mas que se afasta de uma finalidade séria, objectivo que se pretende para uma obra de ficção, mesmo que pequena. Vamos dar-lhe um empurrão e transformá-la numa cena típica de uma comédia burlesca, à la filme italiano, que se passa num bairro suburbano, mas que também podia ser popular, na cidade ou na província, também no estrangeiro, pois é universal.
Comecemos pelas personagens, que são duas, de raça humana, e vários gatos, em número variável, que não o são, que aqui aparecem (e não é por acaso), sendo talvez as mais importantes (quem diria?).
Os humanos são uma mulher e um homem, ela na casa dos sessenta, actriz de telenovela no desemprego, e ele mais próximo dos setenta, ex-caçador de leões, que em tempos foram amigos e (suspeita-se) terão ficado noivos, desconhecendo-se a razão pela qual a coisa não terá desembocado em casório (pois estava bem encaminhada), mas que se supõe pode ter tido a ver com questões de gatos, pelo menos era o que se dizia na vizinhança.
Sem nada que fazer, aparentemente, a nossa heroína procurava manter-se activa e interessada pelas coisas do mundo e arredores, mais das segundas do que as primeiras, é certo, um hábito que persistia da sua vida anterior e do qual procurava libertar-se devagarinho. O homem, pelo contrário, era precisamente o oposto: terra a terra e com os pés assentes num mundo bem afastado do da vizinha. O que os ligava, se é que de ligação se pode falar, era o raio dos gatos, só que em campos opostos: uma que os protegia, ela, outro que os detestava, ele. Era a clássica relação amor-ódio, qualquer psicanalista o sabia, e que só podia acabar caso não fosse deitada água na fervura, lembrara alguém mais avisado, precisamente no momento em que deitava mais água na sopa (de feijão e couve, note-se).
A cena já era conhecida no bairro, mais ou menos à mesma hora e com os protagonistas de sempre: o homem enchia um alguidar de água e despejava-a em cima dos gatos que se reuniam no logradouro do prédio, atraídos pelas latas de ração da actriz, fazendo-os fugir espavoridos e sem provarem o pitéu, ao mesmo tempo que piscava o olho à vizinha, em sinal de desafio ou sob a capa de uma mensagem de afecto (amor, quem sabe?). Esta, insensível mas determinada, ameaçava-o com o telemóvel e a denúncia, respondendo ao piscar de olho com um manguito. E assim se passavam os dias…
Um dia, porém, o ex-caçador teve um achaque e ficou-se, como quem não quer a coisa, às portas da morte (suspeita-se que já mais para dentro do que para fora da porta), gemendo e sussurrando qualquer coisa, dificilmente compreensível. Ao vê-lo assim, da sua janela, a actriz deu um grito e tapou a boca, suspeitando que era o fim. Em desespero, quase num sufoco, manifestou a sua dor e correu para dentro da sua cozinha, encheu um alguidar e despejou-o para cima do vizinho, dizendo: «Some-te daqui, diabo… mas vai lavado!».

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