O parecer
Pediram-lhe um parecer honesto e transparente. De momento, não tinha nada disponível com essas características. Teria que procurar melhor e darem-lhe mais tempo. Concordaram e ajustaram o valor.
A procura não ia ser fácil, pois o mercado de pareceres estava em baixa. Já estivera bem, mas agora sentiam-se os efeitos da crise: corpos mais magros e com olheiras, morais mais baças… Ia ser difícil, sem dúvida.
Ela própria também tinha que ter cuidado, «não fosse o diabo tecê-las» e vir a ter problemas com o parecer: a mesma roupa e a mala dois dias seguidos, mais do que uma pose era um atestado de incapacidade e sinal de irrelevância, más credenciais para um mercado competitivo. Muita atenção, pois, porque os tempos andavam perigosos...
Os primeiros contactos não correram bem, quer por ausência de pensamento, quer por falha de músculo. Só lhe apareciam «duques e cenas tristes», expressão popular a que tinha que recorrer, embora não fosse muito do seu agrado. Noutros tempos, antes da crise, esta expressão não teria sido necessária, sendo substituída por uma outra onde fossem evidentes os predicados curriculares, com muitos considerandos, metas e objectivos, tudo trabalhado na mais fina prosa e ricos argumentos, polvilhado a dedo e com critério com o perfume da «implementação», de que gostava particularmente. Mas isso fora noutros tempos…
O tempo urgia, no entanto. Não se colocava a hipótese de falhar o serviço. Tentaria mais uma vez, se calhar recorrendo a contactos antigos, provavelmente já retirados, não sabia, mas logo se veria.
As opções em cima da mesa não eram muitas, mas eram algumas: informação, memorando, reunião, sondagem, comentário e opinião. Por indisponibilidade financeira e emocional não contava com o parecer técnico, que tinha muita procura, mas era um universo fechado.
Havia opções que a agradavam mais do que outras, isso era evidente, sendo um critério a ter em conta no exigente mundo dos pareceres. Algumas delas tinham inconvenientes que as desaconselhavam, quando analisadas à luz fria da racionalidade e da conveniência, não necessariamente contraditórias, pelo menos para um olhar mais atento, como era o dos pareceres.
Estavam nesse caso as duas primeiras, a informação e o memorando, que foram boas, em tempos, mas que agora se consideravam anacrónicas. A reunião ainda mantinha algum glamour (não sabia porquê, continuava a reconhecer…), mas em que os resultados costumavam ser muito aquém do que inicialmente se projectava… e que era muito. As sondagens ainda se mantinham pujantes, mas cada vez mais desacreditadas, desconhecendo-se o que estava mal ou bem, mas actualmente terreno muito fluido e escorregadio, a evitar. Quanto ao comentário e à opinião, aqui as coisas eram mais sérias e aprofundadas, pois já entravam num patamar superior, que era o dos direitos e garantias. Ouvia-as sempre e não só por dever de ofício. E mantivera-se fiel ao princípio, mais uma vez.
Mas havia que dar uma resposta e mostrar serviço. E esse também era um princípio sagrado, tal como o outro.
No dia aprazado, logo pela manhã, vestiu o seu melhor vestido e arranjou-se como era adequado ao seu parecer, que estava feito e tinha as características que lhe tinham solicitado: honesto e transparente.
Quando o entregou, foi isso que verificaram. Não havia dúvidas. Como lhe tinham pedido, o parecer era honesto e transparente e concluía assim:
«Azul, se for menino. Rosa, se for menina».
E assinou por baixo.
Etiquetas: Normal
<< Home