17 abril 2015

O candidato


Toda a gente lhe dizia para ler os sinais e esperar pela vaga de fundo. Ficou intrigado com estas referências e isso não ajudou a tranquilizá-lo. Sobre a vaga de fundo tinha dúvidas, até porque achava que isso era pouco lógico, uma vez que nos aproximávamos de uma fase do ano em que as vagas, de fundo ou não, começavam tendencialmente a diminuir de intensidade, excepto na maré cheia, mas para isso já estava preparado. Quanto aos sinais a coisa ainda era pior, embora fosse uma área em que se sentia mais à vontade. No momento, e para dizer a verdade, os sinais para serem lidos não abundavam ou, hipótese a considerar, provavelmente ainda não teriam sido escritos ou publicados, admitindo-se aqui que a forma de divulgação seria a escrita. Caso os sinais fossem audiovisuais, teria que estar atento e ver como eram: com mais cor ou menos ruído, mas sempre significantes. Mantinha-se alerta, contudo.
E foi nesse estado, de alerta, que ao olhar em frente viu a pichagem no muro: «Rasga tudo. Menos o jornal». Ficou intrigado. Como slogan era apelativo, mas tinha receio que fosse um tudo-nada radical, por isso teria que ter cuidado, pois não queria alienar ninguém, sobretudo as pessoas ligadas à área das roupas, que eram muitas e com aspirações legítimas, muitas delas fundadas em raízes familiares e geográficas com pergaminhos.
A parte do jornal agradava-lhe e estava mais sintonizada com uma candidatura que se queria aberta e abrangente, embora tivesse que incluir também outros meios, como a televisão, pois era importante chegar às franjas que só tinham acesso a este meio de comunicação de massas, que também abrangia os feijões, as batatas e os arrozes, tradicionalmente um eleitorado com um perfil mais conservador.
Quanto às novas tecnologias estava à-vontade, era um domínio em que se sentia confortável e a frase da pichagem não colocava esse universo em causa, por manifestamente não se lhe referir, pelo menos em sentido literal: não era rasgável e não tinha o aspecto de um jornal, embora às vezes lhe fizesse aproximações (de longe). Mas faltava-lhe o papel e esse pormenor dizia muito. Tinha que ter cuidado, no entanto, e usar de muita subtileza neste domínio, que era vasto e fluido. Com jeito, a parte do «rasgar tudo» podia ir numa direcção que lhe interessava e que dizia muito a este universo de eleitores que surfava nas novas tecnologias, que sempre se viam como pioneiros, inovadores e modernos – o futuro, está bem de ver. E ele estava com o futuro.
Apesar das reticências iniciais, que eram compreensíveis, agora as coisas pareciam bem encaminhadas, se bem que continuasse a manter relutância em relação à vaga de fundo, coisa que procuraria ultrapassar numa fase mais técnica, depois de consultar o mapa das marés e de parecer do instituto que supervisionava as coisas em matéria de clima. Mas a decisão estava tomada: iria avançar!
De imediato começou a tratar das questões do financiamento. Como primeiro gesto, altamente simbólico, pediu dinheiro a uma amiga para comprar o jornal.

Etiquetas: