A máquina
Decidira mudar de vida. Tinha sido uma decisão ponderada. Agora, havia que concretizá-la, sobretudo pela parte administrativa.
Informou-se sobre a existência de uma linha de apoio, que acreditava estar em funcionamento e à qual se poderia chegar através das novas tecnologias ou do telefone, pois a presencial estava cada vez mais em desuso, embora desse jeito às vezes.
Disseram-lhe que sim, que talvez já tivesse sido lançada, mas que ainda estaria em testes. Também lhe disseram que tinha sido uma imposição da troika, pois de outra forma não haveria dinheiro para o trivial.
Não estava a contar com este contratempo, pois sempre lhe tinham dito que as novas tecnologias seriam o futuro, que era radioso como só os futuros conseguem ser. Mas estávamos no presente, e no presente o mudar de vida não começava nada bem, inclusive começavam a ver-se algumas nuvens, não se sabia se de chuva ou de apenas nublado.
Não se iria deixar abater, contudo. Uma vez que não era possível recorrer à linha de apoio para mudar de vida, procurou saber se haveria outra forma de obter o certificado para a mudança de vida, de preferência não muito caro, mas reconhecido e com garantias de não se tratar de uma falsificação. Falaram-lhe de uma máquina. Ficou interessado e quis saber mais pormenores. Quem lho tinha dito não soube dar-lhos. Não se ficou e perguntou no café.
Também não sabiam, mas perguntaram-lhe se era o costume, com muita ou pouca manteiga. Disse que não, pois iria mudar de vida: pão de cereais só. O café forte mantinha-se, pois queria manter ainda alguma coisa da vida anterior, mesmo que fosse um erro (tinha consciência disso). Mas teria que viver com isso. Compreenderam e convidaram-no para o almoço, que era cozido, mas recusou, pois receava não chegar a tempo, por causa da mudança de vida.
Perguntou no quiosque dos jornais e aí teve mais sorte: a máquina existia, sim senhor, e ainda era usada. Mas tinha poucas opções. Se quisesse experimentar que levasse trocado, pois não aceitava todas as moedas. Não era longe e não precisava de carro para nada, até porque era difícil estacionar e estava a guardar as moedas para a máquina.
Resolveu andar, pois, e isso entusiasmou-o. Sempre gostara de andar e era uma coisa que iria manter, apesar da mudança de vida. Não se poderia esquecer de o assinalar no quadradinho para o efeito, pois de certeza que existiria um quadradinho desses para indicar qual ou quais as coisas que se queria manter da vida anterior. E andar era uma delas.
Com o pensamento absorto, quase não se dava conta de que tinha chegado ao local que lhe tinham indicado no quiosque, que era numa esquina e com uma porta que passaria despercebida não fosse a música que de lá saía, que já não ouvia há muito tempo, mas que não lhe parecia má, dando até para um balanço da perna direita, que era a do ritmo.
Resolveu entrar e perguntou se era ali que existia uma máquina para mudar de vida. Disseram-lhe que sim, que era ali, mas que agora tinha que esperar um bocadinho, pois a máquina estava em modo jukebox e teria que aguardar que o casal que estava na mesa três (só havia duas) acabasse de ouvir as músicas que desejava (que deviam ser muitas, dado o número de moedas).
Perguntou se poderia sentar-se e indicaram-lhe a mesa dois, junto à janela. Enquanto esperava, ia-se entretendo com as músicas. Ao mesmo tempo, interrogava-se se estaria no lugar certo, pois não via ninguém com ar de estar ali para mudar de vida. Teria sido engano ou partida que lhe fizeram? Não o podia saber, mas também já não interessava. O casal fora-se embora e levava ainda muitas moedas. Anotou o facto, mas não lhe deu mais importância. Finalmente, poderia dar início à mudança de vida.
Dirigiu-se ao balcão e perguntou se já o podia fazer. Disseram-lhe para aguardar só mais um bocadinho, pois tinham que mudar o modo jukebox para o modo mudança de vida, que demorava sempre mais um bocadinho, apesar de a máquina já estar quente.
Quando ia a começar, avisaram-no que a máquina só aceitava escudos. Com euro, escusava de tentar. Para além do mais, só podia escolher uma de três opções para a mudança de vida: 45, 33 ou 78 rotações por minuto (rpm). Disse que estava bem e concordava.
Escolheu a de 33 rpm. Sempre gostara de LP (Long Play).
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