16 junho 2011

«Undercobe»

Todos sabiam que não o era, a começar pelo próprio. Eriçava-se quando o tratavam assim, «espião», deixando escapar uns maldizentes vernáculos sobre a honra maternal dos interlocutores, embora lhe passasse rapidamente a azia - «consequência do treino», afiançava. Quando isso acontecia, contudo, a reacção era habitual: rapidamente desaparecia da circulação e só voltava a aparecer dias depois, mais misterioso e desconfiado, consciente de que tinha sido necessário apagar indícios e «abortar a operação», justificava-se aos mais próximos.
Seja como for, «espião» ou «agente secreto» - «undercobe agent», sussurava, entre dentes, numa mal assimilada pronúncia anglo-saxónica, menos «anglo» e mais «saxónica», note-se - era uma personagem que se evidenciava pelo estilo e pela pose, ambas nada dadas ao «encoberto».
Primeiro que tudo, na indumentária: espampanante era eufemismo, tal a combinação cromática! Aliado a esse pormenor - «técnica de dissimulação», jurava a pés juntos - uma parafernália de quinquilharia (antenas, rádio a pilhas, auricular, canivete chinês, cassetes de feira, colunas e mochila), justificada como «gaijetes de vigilância», faziam do nosso «undercobe» um dos personagens mais requisitados pelas máquinas dos turistas, visitantes ocasionais e tranquilos cidadãos despreocupados. O que, para ele, era bom: sempre pingavam umas moeditas e, nos melhores dias, uma ou duas notitas - «para manter o disfarce», filosofava.
Um dia, «undercobe» estava mais agitado do que o costume. Andava de um lado para o outro, com as abas da gabardina levantadas - sim, ele tinha uma gabardina e usava as abas levantadas... - e olhava, de soslaio, para cada um dos lados da rua, aproximando-se subrepticiamente de nós, simples e visíveis mortais, com a sacramental pergunta: «Papa uóse um rolin estone?», questionava uma e outra vez: «Papa uóse um rolin estone?»... e nós, nada. Auto-convencionara o seu santo e senha, mas sem grande adesão dos «não-iniciados» na arte da espionagem, pelo menos na versão do nosso «urdercobe». Ainda hoje, passados estes anos, já sem dentes e mais encurvado pelo cacimbo e pelo álcool, continua na sua árdua e contínua demanda junto dos passeantes, dos «paisanos» em linguagem «urdercobe», murmurando, como quem não quer coisa: «Papa uóse um rolin estone?»... Se calhar, «who nouse?»...

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