18 janeiro 2020

Medos

A inspiração bateu à porta do escriba e disse-lhe para ir com ela. Pensando em recusar, até porque era cedo, o escriba perguntou-lhe se não seria mais um capricho, logo substituído por outro. Não lhe respondeu. Estava já pronta. Só restava ao escriba ir atrás. 
Já havia pessoas na rua. Não se preocupavam com eles, pois o objectivo era outro. Seguir em frente, sempre em frente, ordenara-lhe a inspiração. Mas o escriba era teimoso, por isso era escriba, e gostava pouco de ordens. Não desgostava de ir em frente, mas tinha uma abordagem mais redonda, dependia dos trajectos e da disposição. Que nesse dia até nem era má, apesar do acordar mais tumultuoso, por causa dos medos, que tinham chegado tarde, um deles com os copos.  
Muitas vezes não sabia o que fazer com eles. Umas vezes deixava-os andar, noutras varejava-os. Mas já estava habituado e faziam-lhe companhia. Até nem eram maus de todo e comprara-os por bom preço, na feira da ladra, a um artista que se queria desfazer deles, não tendo já fé nem pachorra para os aturar.  
Rejeitou o nome que o artista lhes dera, que lhe pareciam complicados e difíceis de pronunciar, e logo ali os baptizou com outros mais simples, mais fáceis de memorizar. Também não estava muito preocupado, pois sempre tivera medos desde criança e dera-se bem com eles, divididos por classes: os de debaixo da cama e os de atrás da porta. Se fossem mais do que um atribuía-lhes um número, à medida que lhe iam aparecendo. 
Como era de prever, a inspiração achava-os todos muito fofinhos e queria que lhos desse, nem que fosse só para dar uma voltinha de vez em quando. Não tinha grandes objecções, o problema era a licença, que a inspiração não tinha. E também não queria tê-la, dizia-lhe ela, pois a licença não se adequava ao seu estilo, umas vezes fashion outras démodé, mas sempre na moda.  
Já fora uma vitória conseguir que usasse trela quando lhos emprestava, o que não fora fácil, mas que servia de exemplo ao perigo que ela encarnava (pois, se não fosse assim, os medos desarvorariam porta fora, sabe-se lá para onde).  
Criados com o artista, não foi fácil a habituação dos medos aos costumes da nova casa. Compreendia-se, pois vinham de um mundo completamente diferente. E ao princípio a coisa foi difícil. O pior eram as necessidades, pois se os deixassem faziam tudo em casa. Com paciência e perseverança lá se conseguiu levar a bom porto este desígnio, o que não foi fácil. Tirando os dias em que havia feijoada, deixara de haver problemas.  
Nas férias também havia problemas, pois nem todos os hotéis ou residenciais queriam receber medos. Só se safavam os que estavam classificados como assombrados, que ainda eram poucos para as necessidades do turismo. Era uma situação a rever, pois o turismo era um caminho a seguir, ou não fosse esta a panaceia do país, que se dispunha a fazer uma campanha de promoção de medos no estrangeiro, sob o slogan: «Visite-nos e traga o seu medo consigo». Não era mal pensado e entravam divisas, aumentava o PIB e criava-se emprego. Se isto não era um medo, onde é que estavam os medos? 

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