Partida de(os) unicórnios
O visor do telemóvel indicava «número desconhecido». Não tinha por norma atender nestes casos, mas também gostava de ladear a norma algumas vezes. Este seria um deles. Atendeu e uma voz perguntou-lhe se aceitava a chamada, que era a pagar no destino. Nem pensou e disse que sim, mas também podia ter dito que não. Era só ter pensado um bocadinho... Depois de aceitar, outra voz cumprimentou-o e perguntou-lhe como é que estava. À semelhança da primeira, também não conhecia a segunda voz. Não se preocupou com isso e pensou que talvez houvesse algum parentesco entre elas, apesar de não as conhecer. É uma das tendências do ser humano, esta de atribuir lógica às coisas e aos factos. Outra é de não lhe atribuir lógica nenhuma, mas aí já estamos no domínio da conspiração. Da teoria, não da prática, apesar de tudo mais fácil. Mas a voz insistia e pedia-lhe um minuto do seu tempo, se não fosse pedir muito. Não era, até porque estava a promover precisamente um minuto do seu tempo, recordava-se agora. Por isso, pegou no cronómetro e dispôs-se a ouvir. Se a coisa corresse bem, talvez concedesse dois minutos, três, no máximo. Lá fora, começaram a bater-lhe à porta. Era uma gaita, pensou, logo agora é que tinha de ser, mas de gaita não tinha nada - era a voz da consciência, essa chata, ainda por cima inconveniente, praticamente de madrugada e no dia de S. Martinho, vejam só! Falou para a voz do telemóvel e pediu muitas desculpas, que tinha que aguardar uns minutinhos mas que não se preocupasse, pois era pessoa de palavra e a dispensa do minutinho do seu tempo mantinha-se de pé, só mais um bocadinho. Estava frio. Talvez por isso e por não se agasalhar convenientemente, já a avisara, a voz da consciência estava um pouco afónica e com vontade de entrar. Mas não estava para isso, que viesse mais tarde. Ela ainda lhe lançou aquele olhar de carneiro mal morto, mas não se demoveu, o que a levou a fazer-lhe um manguito e a mandá-lo para uma parte que nem sabe bem onde fica, mas que presume pr'a longe. Já a conhecia e não estranhava, pois aquilo passava-lhe passado pouco tempo, sendo consequência de uma vida difícil, como era aliás a de todas as vozes da consciência, até havia um curso para isso, queixavam-se de quê? Não tinha sido a vida que escolheram, não era uma vocação? O que é que queriam?
Retomou a chamada com a voz em espera no telemóvel. Lamentou o atraso e as circunstâncias, que a voz do lado de lá compreendesse, mas há sempre imprevistos, como a voz da consciência, por exemplo, e voltou a carregar no cronómetro, estava disponível agora, podia dizer. A voz do telemóvel disse que não fazia mal, que compreendia, mais a mais agora, com a crise, a seca e quejandos, palavra que não reconheceu à partida, mas que suspeitava tinha a ver com dietas, e para isso não estava virado. Ficou alerta, por isso, mas a voz do telemóvel tranquilizou-o com aquele tom com que se costuma tranquilizar as mentes e as pessoas, recheada de oportunidades, oportunidades, enfim, através de um pequeno investimento, lógico, mas sempre visto como um incentivo, uma aposta nos jovens, na economia, no futuro e nas viagens interplanetárias, em low-cost e com direito a 30 kg de bagagem e lugar à janela, se não era uma boa ideia? A coisa não lhe desagradava de todo, reconhecia, mas precisava de garantias, da indicação de referências ou de fiador, que compreendesse pois se tratava das suas economias, ganhas com esforço e habilidade, mais esta do que aquela, não lhe custava reconhecer, mas que também funcionava como sinal distintivo na classe a que pertencia, a dos carteiristas da escola velha mas honrada, com pergaminhos e curso tirado nas melhores carreiras de transportes do país e arredores, se bem que aqui, menos. Iria ver o que se arranjava, mas que fizesse a finura de se identificar, não levasse a mal mas era para um post nas redes sociais e para deixar uma indicação aos netos, esses jovens impenitentes que não estavam a pensar em seguir a carreira da família e só pensavam em start-ups e em computadores e, imagine-se, até se tratavam por «unicórnios», vejam lá, se era possível um animal só com um corno!?
Retomou a chamada com a voz em espera no telemóvel. Lamentou o atraso e as circunstâncias, que a voz do lado de lá compreendesse, mas há sempre imprevistos, como a voz da consciência, por exemplo, e voltou a carregar no cronómetro, estava disponível agora, podia dizer. A voz do telemóvel disse que não fazia mal, que compreendia, mais a mais agora, com a crise, a seca e quejandos, palavra que não reconheceu à partida, mas que suspeitava tinha a ver com dietas, e para isso não estava virado. Ficou alerta, por isso, mas a voz do telemóvel tranquilizou-o com aquele tom com que se costuma tranquilizar as mentes e as pessoas, recheada de oportunidades, oportunidades, enfim, através de um pequeno investimento, lógico, mas sempre visto como um incentivo, uma aposta nos jovens, na economia, no futuro e nas viagens interplanetárias, em low-cost e com direito a 30 kg de bagagem e lugar à janela, se não era uma boa ideia? A coisa não lhe desagradava de todo, reconhecia, mas precisava de garantias, da indicação de referências ou de fiador, que compreendesse pois se tratava das suas economias, ganhas com esforço e habilidade, mais esta do que aquela, não lhe custava reconhecer, mas que também funcionava como sinal distintivo na classe a que pertencia, a dos carteiristas da escola velha mas honrada, com pergaminhos e curso tirado nas melhores carreiras de transportes do país e arredores, se bem que aqui, menos. Iria ver o que se arranjava, mas que fizesse a finura de se identificar, não levasse a mal mas era para um post nas redes sociais e para deixar uma indicação aos netos, esses jovens impenitentes que não estavam a pensar em seguir a carreira da família e só pensavam em start-ups e em computadores e, imagine-se, até se tratavam por «unicórnios», vejam lá, se era possível um animal só com um corno!?
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