06 novembro 2016

Obra (em aberto)

Pensou em dar volta ao texto. Mas ir do pensar ao fazer não era fácil, como constatou logo. As dificuldades eram mais do que muitas, algumas inesperadas, como a do espaço, que era pequeno e porque tinha um pilar no meio. O artista também não ajudava, pois dizia que só tinha a quarta classe e não estava para aturar as ideias dos «doutores», que funcionavam bem no papel mas que não se aguentavam na realidade, na maioria das vezes caindo. Mesmo assim lá o tentou convencer, dizendo-lhe que a quarta classe dele era quase como uma pós-graduação de agora (baixando o tom de voz no 'quase'), mas que tivesse paciência, engenho e arte para o ajudar a dar a volta ao texto. Não muito convencido, acabou por anuir mediante a proposta de pagamento de mais alguns euros e sem passagem de recibo (ou seja, por debaixo da porta), aproveitando-se a oportunidade para criticar o trabalho dos anteriores, que tinham deixado a abertura maior do que deviam, não surpreendendo porque não eram da profissão, «tudo uns aldrabões», na sua opinião.
Já se sabia que o prazo era uma das questões sensíveis. Com este não devia ser diferente, estava convencido, mas não custava nada voltar a convencer-se e lá lhe perguntou quando é que seria a volta ao texto. Entretido com o metro, o artista disse-lhe que não lhe iria dizer já porque precisava de avaliar o nível, que lhe parecia desalinhado, e a qualidade dos termos, substantivos e verbos, sobretudo, pareciam-lhe de pouca qualidade, esfarelando-se com facilidade e deixando passar a humidade, apesar de se estar em zona seca. Quanto aos adjectivos era melhor não dizer nada, pois tinha consideração por ele, que lhe fazia lembrar o avô, que Deus tenha, e ficávamos por aí. Contudo, lá disse isto: «o trabalho faz-se, descanse, mas precisa de tempo, que é coisa que não tenho agora. Importa-se que fique como obra aberta?».

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