À procura da paisagem interior - amostra 9
Adepto do exercício físico, Senupe agitou três vezes a cauda, pausada e demoradamente, largando um «béu» de satisfação quando se viu ao espelho, orgulhoso do cumprimento semanal do programa de treino, elaborado pela Marmela, que só aceitava a corte caso o seu cão, mais das filosofias e da literatura cortesã do que dos físicos, se comprometesse com este objectivo. Que poderia fazer o nosso Senupe...? Claro que já adivinharam a resposta, e as abanadelas da cauda eram o comprovativo, três vezes repetido, largamente afastado do que constava na carta de treino, é certo, onde as imperturbáveis e espartanas 1500 abanadelas de cauda diárias se definiam como objectivo mínimo, mas a Marmela não tinha que saber e a solidariedade masculina se comprometia a não revelar o logro, em nome do amor e da paixão - força Senupe!
Pensava eu nestes meandros do mundo canino, sempre impenetráveis e obscuros, como sabem, quando a PI telefona a perguntar se não quero passar lá por casa, pois tinha algo que gostaria de partilhar comigo, coisa simples, mas epifânica!, dizia entusiasmada, uma nova perspectiva sobre o ser e o estar no mundo, mas tudo muito singelo, muito suave, em tons matizados e bons para a respiração e a alma, sem esquecer as articulações e a flexibilidade. E que trouxesse o Senupe, acrescentava, pois a Marmela estava com muita curiosidade de ver a evolução do corpo do amado, na sequência do programa de treino, que a ver pelas fotografias mostravam um garboso pastor alemão, cheio de músculo e pêlo na venta, que transformação, uau!, a cadela não se calava, dizia-me a PI, meia a rir, meia a chorar, pois já não dormia há meia dúzia de noites, que eu me apressasse e fosse ouvir o que ela tinha para partilhar comigo, Ala! Andor! Bute! Zune!, reforçava.
Transmitindo o recado ao Senupe, este imediatamente se fez de morto e apontou a pata esquerda para os cinco volumes de fotografias que constavam em cima da sua mesa de trabalho, a arma do crime, está visto, tal a quantidade de fotos de pastores alemães de toda a qualidade e feitio, socorrendo-se do seu código morse canino para help, «socorro!», para os não entendidos em Inglês, três béus longos e um curto, como quem diz, safa-me desta, dono, que eu depois levo-te a passear... E lá tive que ir sozinho...
Cheguei a casa da PI num pé, depois de ter iniciado o percurso, deixando o outro para o regresso (ahahah), é curioso como é que nos lembramos destas coisas dos ditos e dos aparentados, umas vezes para nos divertirmos ou fazermos uma chalaça, como neste episódio, como devem ter percebido os simples, pois os complexos não costumam interessar-se por estas coisas, ou uma reflexão sobre o sentido da vida ou o aumento do preço dos bens alimentares, por outro, mas é melhor deixarmos isso para outros carnavais, como vêem, isto é uma tendência, não liguem...
Bati à porta da PI e ela nem me deixou dizer nada, depois dos três beijos à francesa, pensavam que me esquecia, não...!?, e me revelou que se descobrira epigramática, sentindo-se deliciada com isso, e o que é que eu tinha a dizer...?
Depois de refeito, decidi aceitar o seu repto e brindeia-a com uma pérola, concebida e produzida durante a caminhada, mais concretamente à saída da tasca do careca, que saiu assim: «Sai fora do frasco, mas primeiro tira a tampa!». E regressei a casa no outro pé.
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