Factos (e fatos) alternativos
Olhou para a mochila e verificou se estava tudo: roupa, saco-cama, merenda, água. A lanterna, os binóculos e o canivete suíço, prenda do Macgyver, iam consigo no colete e nos bolsos das calças. Nem sabia bem para o que ia, mas à cautela levava as coisas que lhe pareciam o básico para este tipo de expedição, da qual pensava estar de volta por horas do jantar, talvez um bocadito mais, logo se veria.
A curiosidade tinha sido mais forte do que a acomodação (e se esta era forte!), irresistível para um aventureiro como ele, passadas tantas e tantas, umas melhores, outras piores, mas aventuras de se lhe tirar o chapéu (ups!, falha grave esta, pois tinha-se esquecido dele, ainda por cima oferecido pelo Indiana, ia já a correr pô-lo), por montanhas, vales e florestas, menos pelos águas revoltas, sobretudo no Inverno, também por ser um bocadinho atreito ao frio e à humidade, daí os problemazitos nos ossos, mas nada que pusesse em perigo a segurança e o desempenho na actividade.
Tudo começara por uma conversa que ouvira no café, depois do almoço, que é uma hora costumeira para o distender da língua e da imaginação, também para passar pelas brasas, sobretudo se estiver num sítio confortável e quente, mas menos provável nos cafés, por causa do barulho das conversas e do tilintar das chávenas. A conversa era entre dois compinchas de longa data, o Tico e o Teco, danados para a reinação e para a balbúrdia, apesar de estarmos no Carnaval e ninguém levar a mal (mentira, pois a senhora que dormitava na mesa ao lado acordara, sobressaltada, e começou a rezar um terço, assim, sem mais nem menos, mas percebia-se que era por fé, deixando-se sossegada depois de lhe ter sido prometido que o que estava a ouvir era fruto do sonho e que não se preocupasse, pois logo, logo ia voltar a adormecer, agradecendo ela e aproveitando a passagem do empregado para pedir mais um cálice daquele licor, de sabor muito suave, que lhe fazia muito bem à tosse e também era digestivo, se fizesse favor e quando pudesse)... Mas deixemos a nossa devota e continuemos para o que nos conduziu à decisão sobre a expedição, se bem se lembram e que está no início da história, logo no primeiro parágrafo, aquele onde se fala do arranjo da mochila e do que se vai meter lá dentro.
E o que a conversa entre o Tico e o Teco revelara (para seu espanto!), era a existência, supostamente comprovada por eles, de fatos alternativos, algures, já não se lembravam bem, pois já era ao lusco-fusco, mas ali para os lados da Moita de Cima, mais ou menos nos limites com a Moita de Baixo, divergindo eles sobre as características da espécie ou das espécies, não tinham a certeza se era um com muitos olhos e pernas ou muitos com olhos e pernas ao mesmo tempo, uns brilhantes, outros nem por isso, mas assim para o baço. E a luminosidade ou a falta dela é que lhe chamara a atenção, pois a referência aos fatos alternativos, só por si, volta e meia aparecia referenciada em crónicas e teses diversas, daí já não ser grande originalidade. Agora, fatos alternativos brilhantes aí é que a porca torcia o rabo! Tinha que ver.
As indicações eram imprecisas, pois os limites entre Moita de Cima e Moita de Baixo são grandes e extensos, e não dispunha de muito tempo. Tentaria a sorte pelo velho método da moeda ao ar, sempre infalível e de interpretação segura: ou cara, e vais para a esquerda, ou coroa, e vais para a direita. Como a moeda ficou a meio, em equilíbrio, o que não deixava de ser um sinal, seguiu em frente.
Sinal de que a escolha em frente tinha sido boa e oportuna, os vestígios sobre os fatos alternativos brilhantes apareciam aos molhos, como o alecrim, ou como as fitas de carnaval, que havia muitas por essa altura, fazendo-se ouvir uns apitos e umas pandeiretas que, da sua experiência, lhe davam indicação de que se tinha aproximado de outro continente, ali mais em direcção ao hemisfério sul, era o que lhe dizia a bússola, mas que devia estar enganada, pois Moita de Cima e Moita de Baixo eram do hemisfério Norte, distrito da capital, ainda se lembrava… A análise teria que ser mais fina, concluía, e bebeu um gole de água, que lhe pareceu com um ligeiríssimo travo de aguardente, o que até soube bem, pois estava com um bocadinho de frio.
À medida que se aproximava, o barulho e a berraria aumentava. Sem se aperceber, tinha aterrado num corso de foliões e de folionas, de todas as cores e feitios, mas compenetrados do seu papel ou da falta dele, mas não importava, estávamos na altura e havia que dar corda ao desfile.
Num valezito à frente, mas à vista, que tinha de fazer as vezes de uma cratera, que não havia, estava estacionada uma nave, de alta cilindrada, mas com pouco consumo, fruto de uma tecnologia avançada, pronta para fazer as vezes de um drone gigante e fazer umas filmagens, por cima do corso, e atirar uns confetes. O passeio era de borla, mas só para convidados.
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