01 janeiro 2017

Tem dias

Descuidara-se e tinham-se-lhe acabado os dias. Procurou por toda a parte, incluindo atrás das portas e debaixo das camas, mas não encontrou dias perdidos nem achados. Em contrapartida, encontrou algumas horas e minutos, mais pequenos, e um talão da lotaria fora de prazo. Sem dias era como os fumadores sem cigarros e as noites não serviam, habitualmente com sono. Lembrou-se de uma mercearia, ali perto, conhecida por ter de tudo, se veria com dias também. Iria num pé e viria noutro, ao pé coxinho, pois era promessa, de ano novo ou ano velho já não se lembrava, mas uma promessa, certamente, que o caminho ainda era um bocadinho e a subir, pelo menos na ida, não na volta, que era a descer, a não ser que atalhasse.
Chegado à mercearia, cansado de ir só num pé (pudera!), quase lhe saltavam os bofes quando perguntou ao merceeiro se tinha dias, ao que este respondeu que sim, dependia das circunstâncias, mas que logo passava com uma aspirina e um chá de tília, preparado pela senhora... Quanto aos que o freguês pretendia, se bem estaria a ver a coisa, vendera o último minutos atrás, a um desenganado com a vida, mas que recuperara a tempo de assinar contrato para a China, onde, supunha-se, iria jogar à bola dia sim dia não, nas folgas dedicar-se-ia ao estudo, «veja lá bem como é que são as coisas?», interrogava-se o merceeiro filosoficamente, pois era hora disso e compromisso antigo, vá lá saber-se porquê, questionava-se o desvalido dos dias e protagonista de histórias como a que se conta ou se ouviu, já não há certezas de nada, admitamos, dizia o narrador para quem o queria ouvir, agora e na hora, amén, não se esqueça do meu totoloto ou euromilhões, não sei bem, mas esses jogos das cruzinhas que se fazem e que nos habilitam a ganhar milhões, vamos lá a ver se é desta, por obséquio, minha senhora, chega para todos e não precisa de empurrar...

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