28 fevereiro 2016

Do arco-da-velha

As histórias do arco-da-velha são especiais. São mais do que histórias. E a qualidade de que se revestem começa na própria definição do que são, nem sempre coincidente e dependendo de quem o diz ou a interpreta, havendo para todos os gostos ou conveniências, mas todas elas uma história ou com uma história, também se conclui.
Tratando-se de histórias do arco-da-velha, é normal que elas sejam contadas ou ditas por muitos, alinhavadas com mais ou menos pontos, consoante o jeito ou o talento (ou a falta deles). Talvez a que se segue seja uma delas.
Em vez de se começar por «era uma vez», iniciemos o conto por «certo dia», algures num país em que se vai vivendo, mais afastado ou menos afastado dos truques da sobrevivência ou da gestão do quotidiano, por uma vez vocacionado para a fruição lúdica do incrível e do disparatado, umas vezes a sair bem, outras nem por isso, mas com essa singular característica de serem «do arco-da-velha».
A horas do entardecer, dois homens seguem num carro, serpenteando uma estrada sinuosa, desfrutando a paisagem bela e rude. Dos homens se dirá apenas que um é mais galhofeiro do que outro, que é quem conduz.
Mais abaixo, uma terceira personagem, igualmente homem, montado numa bicicleta, provavelmente também desfrutando a paisagem «bela e rude», só que com mais esforço e suor pelo corpo, não custa perceber a quem está a ler e, talvez, aos outros dois.
A pedido do galhofeiro, que queria dar uma palavrinha ao ciclista, «seu conhecido», reforçou, o menos galhofeiro dos homens diminui a velocidade e quase pára junto do que pedalava, momento usado pelo galhofeiro para abrir mais o vidro e colocar a mão de fora, empunhando uma pistolita, comprada numa loja de brinquedos, e disparar três «tiros» na direcção do atleta do pedal, com fulminantes de brincar, é certo, mas com chamejantes a imitar os verdadeiros. Por instinto de sobrevivência, compreensível naquelas circunstâncias, o ciclista guina o volante e cai numa valeta (baixa, felizmente), gritando para quem o quis ouvir (embora fosse difícil, pois não havia ninguém): «Ai, que me mataram!».
No carro, pelo contrário, o ambiente era outro, de pânico para o sério e de resignação para o das galhofas, após este ter pedido ao outro que não parasse e que acelerasse o mais possível, mas com atenção às curvas. Mas isto durou pouco, recusando-se o sério a continuar sem saber o que tinha acontecido ao ciclista, que o desculpasse o amigo mas a sua consciência de boa pessoa a isso o obrigava. Como o outro concordou, pois também era boa pessoa, só que mais pândego, inverteram a marcha e puseram-se à procura do ciclista, pedindo a todos os santinhos que ele não se tivesse magoado muito e, já agora, que não ficasse muito chateado com o que tinha acontecido, brincadeiras parvas, está-se a ver, mas feitas de boa-fé e a confiar na boa-fé dos outros, só que às vezes é difícil, que compreendesse, pois. E o que viram deixou-os estupefactos, agora que constatavam que o ciclista não tinha sofrido maleitas de maior, tirando pequenas escoriações na cara e nos braços, provocadas pelas silvas, com um sorriso de orelha a orelha e a chamar-lhes «meus salvadores, fortunas vos caiam na cabeça tal como a que me calhou a mim!» e apontando para um pote de ouro (sim, de ouro!) junto a si, cheio até cima de moedas e de lingotes, e os outros dois desmaiaram.
Começara a chover, entretanto, mas durou pouco, pois logo um arco-íris se formou. Quando se começou a ouvir o riso de uma velhota, montada numa vassoura, o ciclista levantou o polegar em sinal de cumprimento e ela agradeceu, fazendo um pião. Os outros dois continuavam desmaiados.

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